Cinefilia Crônica | Laranjas e maçãs


[dropcap]C[/dropcap]riei muita expectativa com o lançamento da adaptação para os cinemas do meu livro favorito. Demorou para que o fizessem. Aquela história tão maravilhosa e cheia de reviravoltas merecia ser contada nas telonas, para ser vista por muito mais gente do que os fiéis leitores, quem sabe gerando uma nova edição especial com capa cheia de enfeites, um novo prefácio e uma série de textos de apoio ao final, com especialistas contribuindo para elucidar questões nas entrelinhas.

Paguei mais caro por meu ingresso na pré-venda. Quis evitar filas, tumulto e comentários desnecessários na fila antes de entrar na sala escura. Tinha dúvidas de como os pensamentos do simpático protagonista, fio principal do livro da minha vida até a última semana, seriam mostrados em um filme. Aquelas duas horas tinham a obrigação de ser tão viciantes quanto as 200 e poucas páginas, não admitiria uma traição, com mudanças de rumos ou alterações no enredo. A relação com a esposa e os amigos, o final espetacular, tudo deveria ser seguido à risca para eu não fazer meu protesto silencioso nas redes sociais, nas quais sou seguido por quem não lê nada com mais de cinco linhas.

A cada minuto de filme, minha vontade era ter o livro à disposição para comparar a cena com as páginas impressas e conferir se não havia uma traição digna de um julgamento rigoroso dos roteiristas e diretores. Com juiz e promotores de acusação combinando a melhor forma de puni-los.

Eu era capaz de lembrar as falas do protagonista, sabia para onde ele iria e quais suas próximas ações. Percebi as mudanças em relação ao livro. Perdoei, era necessário.

Vez ou outra, captava reações negativas de olhos vidrados na tela grande. Saí satisfeito e me espantei com as reclamações. Era inadmissível ignorar a cena em que o protagonista nega a culpa no caso do assassinato para a esposa, deixando-a desconfiada de outras traições e segredos. Também mudaram demais a relação com o pai, um alcoólatra causador de problemas nas familiares de fim de ano.

Na fila para entregar o comprovante de estacionamento, escutei relatos esquisitos: estragaram o livro, cometeram um crime, era um absurdo levar aquilo à tela sem seguir à risca as 200 e poucas páginas. Não importavam as linguagens diferentes, a do cinema e a da literatura, não poderiam incomodar os fãs. O autor seria cobrado no Twitter por ter autorizado aquilo tudo, chegando aos assuntos mais comentados nessa rede social.

Pensei ter visto outro filme, pois estava feliz com o que me foi apresentado.

Na volta para casa, ouvia o noticiário pelo rádio e percebi que as questões políticas estavam menos detalhadas que em meu site preferido. Um ou outro comentário, a passagem rápida do relato dos fatos. O noticiário era limitado a uma hora e não tinha tempo suficiente para o aprofundamento da leitura, pensei. Era outra linguagem, outro meio, outra forma de abordar o mesmo conteúdo, pensei novamente.

Estacionei o carro na garagem. O livro e o filme fizeram ainda mais sentido.

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