[dropcap]Z[/dropcap]apeando pelos canais da TV por assinatura, parei em um filme protagonizado por Adam Sandler. Depois de muito trabalho em dois empregos, o cansaço me impedia de sair na véspera de folga. Preferi esperar o sono bater à porta enquanto via àquela comédia inédita para mim. Não conhecia o nome aparecendo na parte inferior da tela.
Começada havia menos de 10 minutos, não perderia muita coisa e poderia dar umas risadas, pensei. Nada de mistérios ou quebra-cabeças. Meia hora depois usei o controle remoto com seus 40 e poucos botões para buscar a sinopse. Devia ser antigo, me senti familiarizado com a história reproduzida na minha tela plana inteligente.
Grande equívoco. Outra vez, Sandler subia de patamar social com uma herança caída do céu. De um cara de voz baixa e rejeitado pelo mundo ao redor a uma mansão com carrinho de campo de golfe entre o portão e a porta da sala. Conseguia, então, engrossar ligeiramente a voz para conquistar uma semi-ruiva, fugia de um golpista tentando levar sua fortuna recém-conquistada, terminava com um final feliz depois de umas risadas com o canto da boca, piadas repetidas envolvendo peidos e peitos, uma aparição daquele outro ator de comédias da sessão da tarde e um trocadilho do personagem meio amalucado, provavelmente melhor amigo do protagonista, antes dos créditos finais.
Senti um “déjà vu” ou o típico “insight” que revela ao investigador o assassino misterioso daquele suspense, a partir de uma pista fundamental, na nossa cara há tanto tempo, com os roteiristas nos fazendo de bobos desde o primeiro homicídio brutal.
Puxei uma folha de rascunho e, ainda deitado na cama, comecei a rascunhar uma ficção que me deixaria rico. Não tanto quando Adam Sandler. Ou Roberto Carlos, que também se repete há décadas com o mesmo especial de fim de ano em dezembro. Mas se eu fosse o único a perceber o “replay” criativo do conhecido ator, com a mesma vozinha irritante e a ascensão por acidente, poderia tentar a sorte por aqui também, por que não? Só precisava fazer essa folha chegar às mãos certas.
Esbocei um homem, com idade pouco avançada. É sempre bom começar delineando os personagens. Branco, com cabelo liso, parecendo uma peruca malsucedida. Olhos azuis, dois ou três casamentos que não deram certo, claro. Ninguém seria capaz de aguentar esse cara desprezível. Suas ideias são estúpidas e o intelecto limitado. Tem filhos disfuncionais, claro, a família do protagonista imbecil precisa ser tão caricata quanto ele.
Se tiver voz baixa, podem me acusar de plágio. Então, terá a língua presa e dificuldades para ler textos simples. Um tosco. Pronto, tenho aqui um personagem.
Lembrei que Leandro Hassum já ficou rico de repente nas telonas. Três vezes. Ficaria muito na cara que não tive uma ideia original. Eureca! O homem grotesco criado por mim seria expulso do antigo trabalho. Limitadíssimo, viraria presidente de um país grande como o Brasil. Coisas da comédia. Ninguém entenderia o porquê e seu governo seria, evidentemente, um desastre completo. Toda a cretinice desse homem bizarro com ideias esdrúxulas viria à tona. Destruição total, o final não seria tão feliz quanto o dos personagens de Adam Sandler e todos aprenderiam a lição com um gosto amargo, como se bebessem dois litros de dipirona.
Quando terminei meu rascunho, reli e achei inverossímil. Ninguém acreditaria nesse roteiro, meu filme era impossível de vingar. Amassei o papel e joguei fora. Terminei o filme e invejei Adam Sandler, capaz de enganar tanta gente com essa farsa repetitiva em produções diversas. Minha história, pelo contrário, não convenceria ninguém.