[dropcap]L[/dropcap]onga Jornada Noite Adentro possui um foco desde o início, que é justamente o título do filme: realizar um dos mais elaborados planos-sequência do cinema em 3D. Mas este não é um filme 3D, conforme anunciado em seu início. Há um momento em que, munidos de óculos 3D, devemos colocá-los, mas no meio da sessão, junto com o protagonista, e eis que assim o trabalho do diretor e roteirista Gan Bi começa a fazer algum sentido.
Mas há um problema nisso tudo para espectadores não-chineses (pelo menos no Brasil): a legenda. A não ser que você entenda mandarim, as legendas em português do Brasil estão em 3D no filme inteiro, o que nos obriga a colocar os óculos desde o início da sessão, perdendo assim a proposta do diretor. O que era para ser um trabalho de imersão e interatividade acaba virando uma experiência lastimável.
E isso nem é culpa do diretor ou de qualquer um da sua equipe, pelo menos até a metade da projeção. Este é um filme escuro, e com óculos 3D ele fica ainda mais escuro. Perdemos os detalhes da fotografia em boa parte do filme. Há um momento em que o protagonista olha por uma janela um trem surgindo à noite. Há árvores em sua frente, e as folhas criam uma espécie de disfarce para que não seja visto. Assistido com os óculos, essa cena 2D nos mostra um vulto que parece uma sombra ou reflexo do vidro. Retirei os óculos e a fotografia está correta, sendo possível ver as folhas da árvore na frente do trem. Qual dos dois filmes merece ser analisado? O que você verá no Brasil ou o que o diretor idealizou? Sinto muito, mas não sei mandarim. Tive que ver um jogo de sombras que não existe na película original.
Mas nem tudo é problema da versão brasileira, já que a partir do momento que devemos de fato usar os óculos o filme perde boa parte da imersão tridimensional. Diferente do Hugo Cabret de Scorsese de 2011, que apesar de também escuro utiliza uma paleta mais fantasiosa e cheia de luzes, as poucas luzes dessa jornada pelo meio da noite são escassas demais para conseguirmos perceber detalhes da cena. Porém, nesse momento percebemos que isso faz sentido pela proposta do filme, é aí que entra o objetivo do cineasta em torno desse trabalho que foge das fórmulas hollywoodianas.
Gan Bi nasceu na cidade de Kaili, na província de Guizhou, região centro-sul da China (que é gigante, diga-se de passagem). Conta ele que quando assistiu Stalker, de Andrei Tarkovsky, percebeu que todo aquele tédio que aprendeu acompanhando os filmes americanos não é necessário seguir. Há um enorme leque de possibilidades que ele, ainda jovem, não tinha experimentado. Seu primeiro longa, Kaili Blues, se passa em sua cidade-natal. Longa Jornada… se passa em sua província. É a história de alguém amargurado pela morte do pai, que o obriga a voltar à sua terra e relembrar que nunca conheceu a mãe.
O filme é sobre essa busca, mais interna que externa. Esse homem carrega um livro verde sobre uma história de amor. Ao começar a investigar o paradeiro da mãe ele encontra dentro do relógio de parede verde do pai uma foto antiga com o rosto de uma mulher queimado por um cigarro. Ele coloca a foto dentro do livro e começa a seguir uma mulher misteriosa com um vestido verde. Nos primeiros quinze minutos de Longa Jornada… já fica claro que esta é uma narrativa movida por símbolos, muitas vezes oníricos, outras vezes temáticos.
O passeio deste homem pelo seu passado lembra os filmes noir dos investigadores e suas femmes fatales, mas nada faz muito sentido em sua busca. Estamos recebendo as informações em pedaços. O homem some e aparece em lugares que não nos foram apresentados, fala com pessoas a quem não fomos introduzidos, mas ainda assim montamos esse quebra-cabeças. Uma fala do protagonista: “sabe a diferença entre um filme e as memórias? Um filme é todo falso, já as memórias algumas são falsas, e outras não.” Como saber qual é qual? Gan Bi se diverte omitindo essa informação que os americanos morreriam para ter.
O filme em 3D, o feito para ser visto com óculos, é escuro demais. Mas este é o delírio de um homem que nunca conseguiu terminar o sonho constante que tem à noite. E cinema é a fábrica de sonhos. Tudo muito óbvio no campo simbólico. Os contornos dessa sequência estão sempre invisíveis. São as sensações que importam.
E quando menos esperamos estamos diante de um plano-sequência magistral, tecnicamente desafiador em vários momentos, que faz lembrar a cena do estádio de futebol em O Segredo dos Seus Olhos, mas que, por ser um sonho, remete mais claramente a Arca Russa. Porém, nenhum deles foi filmado em 3D. E é aí que está a supresinha do final. Bravo, Gan Bi! Eis um bom divertimento.
Este é um filme de sensações, ainda que baratas, já que os anseios do protagonista nunca nos parecem valiosos a ponto de nos preocuparmos com eles no decorrer do filme. Em meio ao niilismo de uma busca desmotivada feita através do subjetivo do espectador da sala de cinema, voltamos ao cinema entretenimento de Hollywood. No que diferem os dois? Gan Bi tem símbolos para entreter, e 3D em locais escuros. E plano-sequência. De resto, falta motivação. E isso pelo menos os americanos têm de sobra.
NOTA: De acordo com a distribuidora houve um erro técnico que prejudicou a copia da versão exibida na cabine de imprensa. O problema depois disso foi então sanado e as copias que entraram no circuito apresentam as legendas legíveis na primeira parte e o 3D (e uso dos óculos) apenas no “segundo momento” do filme.
“Di Qiu Zui Hou De Ye Wan” (Chn/Fra, 2018), escrito e dirigido por Gan Bi, com Wei Tang, Jue Huang, Sylvia Chang.