[dropcap]T[/dropcap]odo e qualquer filme tem o direito de ser interpretado. O público, por obrigação, precisa pensar sobre aquela obra, desvendar seus signos e carregar para si todas as mensagens que ela pretende deixar de legado. Portanto, ignorar a aterrorizante mensagem por trás de A Barraca do Beijo, seria o mesmo que desperdiçar suas intenções, por mais que elas não sejam as melhores.
O filme é a adaptação de um livro Beth Reekles, hoje uma moça de 21 anos, mas que começou a escrever A Barraca do Beijo ainda com 16 anos no Whatpadd (aquela rede social focada no público de escritores e leitores). E isso explica muita coisa, o resultado do filme (não li o livro, mas acredito ser próximo), é de uma imaturidade gigantesca. Grande o suficiente para se tornar perigosa.
Na história, Elle e Lee (Joey King e Joel Courtney) são amigos desde a maternidade, já que nasceram no mesmo dias e suas mães eram melhores amigas. “Eram”, já que a mão de Elle morre em meio a uma montagem agitadinha no começo do filme. Mas realmente, isso pouco importa, já que o filme conta a história da paixão de Elle pelo irmão mais velho de Lee, Noah Flynn (Jacob Elordi).
O problema é que entre Elle e Lee há uma série de regras que pulam na tela e dão um jeitão ainda mais moderno para o filme. Uma delas a impede de namorar o irmão do melhor amigo. Que em linhas gerais também impediria ele de namorar o irmão (muito menor dela), o que permite então que, como a maioria das regras criadas pelos seres-humanos, esteja mais preocupada em prejudicar a mulher.
E esse é apenas a ponta do iceberg.
Lee e Elle resolvem fazer uma barraca do beijo para uma feira da escola e ela acaba beijando Noah, que se todos os estereótipos do universo permitirem, é o clichê mais ambulante da história do cinema. Gigantesco, lindo, jogador de futebol, rico (que cabelo!), briguento e com um coração pronto para encontrar sua grande paixão. Já Lee, obviamente, é meio nerd, bobão, tem lá seu charme e fica sozinho na barraca do beijo, já que ele não é o irmão.
E só por esse parágrafo já seria uma pena que A Barraca do Beijo fosse produzido em 2018. O que difere Lee de Noah são músculos, altura e um abdome sarado, no resto, Lee não é Noah por imposições de um sistema que esmaga uma geração inteira e não permite as pessoas sejam vistas e representadas como iguais. Lee poderia jogar no mesmo time do irmão e a história ser exatamente a mesma, mas é melhor para “essa história” que eles seja um “loser”.
Barraco do Beijo é o retrato de uma geração que não consegue se desvencilhar de uma opressão sócio-cultural que a empurra para um canto escuro e cheio de preconceito, machismo e homofobia, tudo mascarado por um pretenso politicamente correto. A Barraca do Beijo, diferentemente, por exemplo do ótimo Com Amor, Simon, tem a mais absoluta certeza de ser uns dos herdeiros de John Hughes, mas parece estar mais preocupado em destruir esse legado.
Mesmo que Hughes transitasse perigosamente em meio a uma série de estereótipos e clichês, ainda assim fazia filmes sobre personagens em situações que se aproximavam de uma realidade que os jovens da época gastariam de ter tido. Por outro lado, fugindo dessa fragilidade, Hughes sempre conviveu com personagens femininas fortes e que fugiam daqueles caminhos traçados para elas.
E se você não acredita que A Barraca do Beijo tenha pretensões de ir até os anos 80 para “provar seu ponto de vista”, note a música no baile de formatura e os outros alunos na sala de detenção, talvez você reconheça os dois de um certo Clube dos Cinco. E quando a mãe dos irmãos Flynn é Molly Ringwald e surge para não fazer absolutamente nenhuma diferença para o filme, é impossível não entender a referência.
Mas ela não tem importância, porque nenhuma mulher no filme tem importância, principalmente Elle. A protagonista é o resultado de uma sociedade machista tão poderosa que há quem possa enxergar ali uma linda história de amor e não um relacionamento abusivo. O filme parece viver no mesmo vácuo sócio-cultural que não permitiu que uma multidão de leitoras percebesse, por exemplo, o quanto Crepúsculo tratava do mesmo problema e ficou por ai achando incrível a Arlequina ser agredida pelo Coringa em Esquadrão Suicida.
Elle não é dona dela mesma. Primeiro ela é propriedade de Lee, sua melhor amiga e confidente. E quando ela se apaixona por Noah, a primeira coisa que eles devem fazer é se esconder dele, afinal, Noah agora irá ser dono dela. Um relacionamento que começa com ele abrindo o coração para ela, que será seu troféu: “Você é a única mulher que não cai aos meus pés… e isso me deixa louco!”.
Na sequência, como é de se esperar, Lee descobre sobre Noah e Elle e, entre socos, xingamentos e agressões, Lee, tomado pela dor de “ter sido traído”, comenta o quanto seu irmão é melhor em tudo e que Ella era seu alento, “a única coisa que eu tinha era você”. Exatamente, Barraca do Beijo é sobre uma jovem que muda de dono.
E se você ainda não está convencido disso, espere até Noah voltar de um pequeno exílio, com o rabo entre as pernas, para “pedir desculpas”… para o pai de Elle. O novo dono falando com o antigo. Afinal, nesse momento, ela está lá se humilhando tentando convencer seu dono recente de que ela ainda é digna de sua amizade, mesmo depois dela ter se apaixonado e transado com um outro cara sem a permissão dele. Mas tudo bem, já que ele aponta que deixaria a namorada de lado caso ela quisesse que ele fosse dono só dela.
A Barraca do Beijo é tão desastroso que ainda acha que está “fazendo o certo” ao deixar o “eu te amo” no meio de todo mundo, ser uma decisão dela, por mais que, momento depois, seja ela que fique para trás e até sirva de “vallet” levando a moto dele para a garagem e “cuidando bem dela”. E para se manter dentro da diversidade, A Barraca do Beijo ainda resvala em um relacionamento homo afetivo com cara de cota e lhes dá duas cenas “de presente” (acho que, mais especificamente, cinco planos).
E esse emaranhado de péssimas influências parece ser o reflexo de uma fatia de artistas que vem criando obras que se perdem dentro da ausência completa de aproximação com a realidade que os cerca. Que não entende a possibilidade de suas obras serem descascadas até serem encontrados seus reais significados.
Artistas como a escritora Beth Reekles e Vince Marcello (roteirista e diretor do filme) que se satisfazem com soluções bobinhas e infantis, que não se importam de ser inverossímeis com seus sentimentos ditados por uma musica de fundo cafona. Alguns artistas que, perigosamente, podem ser enxergados como representantes de uma geração que, com certeza, merecia muito mais reflexão das obras que podem vir a ser seu baluartes. Obras que querem ser interpretadas, mas, quase sempre, quando cavadas, o que se encontra é um desastre obstruído por suas rasas visões de mundo.
“The Kissing Booth” (EUA, 2018), escrito e dirigido por Vince Marcello, à partir do livro de Beth Reekles, com Joey King, Joel Courtney, Jacob Elordi, Jessica Sutton e Molly Ringwald.
3 Comentários. Deixe novo
Acho que expor essa relação abusiva foi intencional, porque foi algo muito nítido no filme inteiro
Opinião anotada, Andressa, como eu disse no texto, todo filme ou história merece ser analisado a fundo e enxergado de todas maneiras forem possíveis. Muito obrigado pelo comentário tão educado e pouco comum na internet de hoje (risos), opiniões diferentes devem sempre conviver ao redor do que realmente importa, que é a obra.
Espero realmente que você volta sempre ao site e comente ainda mais….
Abraços….
Eu acho que “A Barraca do beijo” é um filme muito fofo…apesar desse relacionamento que no começo se mostra abusivo, mas nas partes finais do filme a “Elle” dá um chega pra lá no Lee e no Noah, falando que mesmo eles sendo amigos não dá o direito dele controlar a vida dela e eu acho que esse filme representou algumas meninas que ainda se sentem presas dentro de relacionamentos abusivos seja na amizade ou no amor e no final Lee aprendeu a lição e deixou ela ir porque ele a ama e quem ama deixa ir por mais que dos, minha opinião.