O renomado diretor italiano Marco Bellochio retorna este ano aos cinemas com A Bela que Dorme, mais um longa que explora temas frequentes de sua filmografia: a política e a religião. Politicamente bastante ativo – ele inclusive já se candidatou ao Parlamento Italiano pelo partido social liberal – e ateu convicto, o diretor aqui se utiliza de histórias que giram em torno do tema eutanásia para investigar os efeitos que a política sem ética e a crendice cega podem ter na vida das pessoas.
O longa conta três histórias que acontecem em paralelo aos derradeiros momentos do controverso caso real de Eluana Englaro, uma jovem que viveu por 17 anos em estado vegetativo, quando seu pai decide tirá-la do sistema de suporte à vida. Em meio a manifestações contra e a favor da eutanásia, vemos as três tramas se desenrolarem. Na primeira, temos uma estrela do cinema francês que larga tudo para cuidar de sua filha que se encontra em um coma irreversível. Na segunda, vemos uma viciada em drogas em profunda depressão em busca da morte, mas que é impedida de ter sucesso em suas tentativas graças à ajuda de um médico prestativo. Já na terceira história vemos uma devota garota católica que se apaixona por um não-crente, enquanto seu pai, um político de alta hierarquia, está dividido entre votar junto com seu partido a favor da proibição da eutanásia ou seguir com aquilo que acredita e votar contra, o que arruinaria sua carreira.
Contando com situações tão distintas, mas ainda assim que abordam o mesmo tema, o valor da vida e até onde temos o direito de decidir se podemos terminá-la ou não, A Bela que Dorme levanta questões para pensarmos não apenas durante a projeção, mas durante muito tempo e de forma séria, já que podem eventualmente ter relevância em nossas próprias vidas. Enquanto as perguntas são mais abertas a diferentes pontos de vista quando entramos na vida dos personagens, o mesmo não se aplica às posições institucionais/políticas nas quais o filme não foca em primeiro plano, mas ainda assim claramente critica.
Repare como na primeira história, todos sofrem com o estado comatoso da garota. Seu irmão tende a querer que ela morra, para que a mãe – que ele tanto admira – pare de sofrer tanto e possa voltar a uma vida normal. Já para a mãe, a filha é o centro de seu universo e toda sua rotina agora está centrada em cuidar dela e rezar por ela. Seria este um ato fútil por parte da mãe? A impressão que temos é a de que cada um tem o direito a sua própria opinião neste caso. Mas a situação muda na terceira história, quando o político que tem que votar a favor ou contra a proibição da eutanásia, praticou ele mesmo tal coisa em sua mulher, que sofrendo imensamente por inúmeros anos, requisitou ao marido o ato final de misericórdia. Este mesmo ato é a razão pela qual sua filha católica não tem falado com ele – e o odeia. Neste caso a justeza de sua decisão é bem mais aparente, visto o sofrimento de sua mulher. A filha, após se apaixonar, então vê que o que pai fez não foi, de forma alguma, um gesto de egoísmo, mas sim de compaixão e amor. Já na segunda história é evidente como o diretor quer passar que há casos onde a eutanásia (ou o suicídio) nunca são uma solução aceitável.
Com a visão que temos destes três contos, as manifestações católicas mostradas como pano de fundo no longa se mostram como um ato cego, radical e que não reflete, nem pode representar todos os diferentes casos. A exemplo da garota católica que injustamente demonizou o pai, tais atos institucionalizados e absolutistas apenas aumentam as chances de criar mais sofrimento a pessoas que já estão passando por uma situação tão difícil. Os políticos que, em sua grande maioria, querem votar a favor da proibição da eutanásia, o fazem seguindo o apelo público, para manter sua imagem junto aos eleitores, e para não confrontar a igreja. (Uma das frases mais emblemáticas do filme é de um dos políticos mais poderosos dizendo que “Não se governa na Itália sem o Vaticano”). Para evidenciar a realidade desta política carente de ética, Bellochio se utiliza de várias imagens de arquivo de Silvio Berlusconi, mostrando que, neste aspecto, nada há de ficção no longa e aproveitando para fazer do Primeiro Ministro o rosto da política decadente italiana em seu filme.
Vale ainda destacar que A Bela que Dorme conta com belas atuações por parte de todo o elenco principal, dando um tom realista e documental à película, o qual somado às imagens de arquivo e ao tema comovente, tornam o projeto imensamente impactante.
Assim, A Bela que Dorme pode até ser um filme belo e marcante, mas o que sairá mesmo do cinema com o espectador são suas perguntas pungentes referentes ao valor da vida humana e aos atos de misericórdia, que, infelizmente, por vezes se fazem inevitáveis.
Bella addormentata (2012), escrito por Marco Bellocchio, Veronica Raimo e Stefano Rulli, dirigido por Marco Bellocchio, com Toni Servillo, Isabelle Huppert, Alba Rohrwacher, Michele Riondino, Maya Sansa, Pier Giorgio Bellocchio, Gianmarco Tognazzi e Brenno Placido