[dropcap]É[/dropcap] a mesma história sempre que um novo filme de Lars von Trier é lançado: as cenas de violência altamente gráfica, talvez acompanhadas das de nudez e de sexo, estampam manchetes destacando o “choque” causado pelo filme e a gratuidade disso. No meio tempo, as nuances e discussões levantadas pelas obras são deixadas de lado e perdem espaço para aquilo que, em última instância, sequer é o foco do cineasta. E, sinceramente, quem já não sabe o que esperar em termos de violência ao entrar no cinema para ver um trabalho do diretor dinamarquês? Pois ele reexamina e até mesmo brinca com essas e outras características de sua filmografia em A Casa Que Jack Construiu, um longa fascinante repleto de complexidades mas que não se leva a sério demais.
Jack (Matt Dillon) é um serial killer que já matou dezenas e dezenas de pessoas. Em off, ouvimos a conversa dele com um homem (Bruno Ganz) a quem o protagonista narra sua “carreira” por meio de cinco assassinatos que cometeu, que ele chama de “incidentes”. A maioria de suas vítimas é mulher, como seria de se esperar, mas ocasionalmente há um homem, criança ou animal.
Afinal, como todo bom serial killer, Jack não demonstra um pingo de empatia, compaixão ou remorso — quando ele fala sobre a única mulher que já amou (Riley Keough), a declaração é imediatamente seguida por demonstrações de o quanto ele a considera estúpida (esse é justamente o apelido que ele dá a ela, que não é nomeada — as outras personagens femininas do longa sequer apelido ganham).
“A culpa é sempre do homem!”, declara Jack diante de sua vítima, amarrada e prestes a ser morta. Muitos vão enxergar A Casa Que Jack Construiu como mais um exemplo da suposta misoginia de von Trier, e não como um exercício em referenciar exatamente isso. Não que este, ou qualquer filme do cineasta, sejam um exemplo de feminismo no cinema — longe disso. Mas é inegável que diversas obras dele, como Melancolia, Ninfomaníaca e Dogville, exploram de forma complexa temáticas relacionadas e centradas em personagens mulheres.
Em A Casa Que Jack Construiu o machismo é do protagonista e claramente rejeitado pelo autor, que faz isso por meio de um senso de humor ácido e autorreferencial. Verge, o homem com quem Jack conversa, questiona: “Por que todas as mulheres das suas histórias são burras e ingênuas?” Talvez essa ingenuidade seja o que as colocou no meio dos “incidentes”; talvez ele simplesmente enxergue todas as mulheres como sendo burras e ingênuas. Para Jack, as mulheres são vítimas melhores por serem mais colaborativas do que os homens. Von Trier veste o manto de provocador e não corre atrás de respostas fáceis para os questionamentos que levanta sobre a própria carreira.
Outra referência importante que a obra faz em relação à maneira com que se insere na filmografia de von Trier diz respeito, é claro, à ultra violência que tão frequentemente ganha destaque no trabalho do cineasta. Jack compara seus assassinatos a uma arte, conceito que ganha ainda mais força por meio do projeto que dá título ao longa. O que a violência que cometemos na ficção diz sobre nós? A resposta em off de Jack é acompanhada de takes de diversos filmes do próprio von Trier.
Mas, por mais seguro de si que Jack pareça, ele é repleto de demônios internos. Para começar, há a grande frustração de ter se tornado engenheiro, e não arquiteto, que permeia todo o processo de construção de sua casa. E se ele não é atormentado por arrependimento algum, o que o persegue após cada assassinato é uma profunda obsessão por limpeza. Jack é metódico e se conhece muito bem, mas também tende a agir por impulso. Aqui, Matt Dillon provavelmente tem nas mãos o melhor personagem — e a melhor atuação — de sua carreira. Abraçando sem hesitação cada aspecto de Jack, investindo em um olhar despido de sentimento, um tom de voz controlado e uma linguagem corporal que traduzem a psicopatia de Jack e a sua frequente frustração.
Com um terceiro ato que eleva a obra a um patamar ainda mais ousado e surpreendente, A Casa Que Jack Construiu é mais um exemplar sensacional na filmografia de Lars von Trier e um retrato admirável sobre um cineasta interessado em reexaminar e ressignificar seu próprio trabalho.
Esse texto faz parte da cobertura da 42° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
“The House That Jack Built” (Din/Fra/Ale/Sue, 2018), escrito e dirigido por Lars von Trier, com Matt Dillon, Bruno Ganz, Uma Thurman, Siobhan Fallon Hogan, Sofie Gråbøl, Riley Keough, Jeremy Davies, Ed Speleers, David Bailie, Ji-tae Yu e Osy Ikhile.