Não, você não está calejado de cinema, não sabe de tudo e nem consegue adivinhar o que vai acontecer sempre. A Chegada mostra exatamente isso, que mesmo armado com todas certezas cinematográficas que existem, ainda assim você pode ser surpreendido.
Contrário a isso, não é surpresa que um filme de Denis Villeneuve fizesse isso. Irretocável, o diretor canadense vem aos pouco se mostrando o mais interessante cineasta de sua geração e A Chegada é o resultado disso. Bem verdade, mais uma pequena obra de arte em sua galeria, junto de Incêndios, Os Suspeitos, O Homem Duplicado e Sicário.
Porém, maior que todos esses citados, A Chegada o coloca em um patamar mais elevado ainda, lá no alto com Stanley Kubrick, Spielberg, Zemeckis e Tarkovski. Tanto por sua grandiosidade, quanto por olhar para o mesmo assunto e conseguir fazer algo novo e inesperado (mesmo com tantas referências tão pesadas dentro do gênero).
A Chegada, como o título anuncia, mostra 12 naves chegando na Terra, e o resultado disso é complexo e imperfeito, seja no quintal de casa, como em termos de planeta. Na nave que pousa em território americano, quem tem a oportunidade de tentar fazer esse contato é a especialista em linguística Louise Banks (Amy Adams) e o cientista Ian Donnely (Jeremy Renner). Mas não é exagero nenhum dizer que qualquer coisa além disso pode significar “falar demais” e até acabar com grande parte da diversão.
Pior ainda (para mim), analisar qualquer outro detalhe da trama pode também ser um escorregão que entregaria grande parte da grandiosidade dela. Mas como o filme é baseado em um conto de Ted Chiang (“Story of Your Life”), talvez não seja um problema um problema tão grande falar um pouco mais sobre o filme. Se bem que tecer um parágrafo de elogios para Denis Villeneuve é quase obrigatório.
Villeneuve é preciso em cada composição, da abertura estática que servirá de rima para o terceiro ato enquanto mostra o horizonte e aquela impressão de que nunca enxergamos tudo completamente, até a sensibilidade com que insere na trama principal a relação da protagonista com sua filha. Uma “subtrama” que nasce e morre em seus braços, mas você entende, mesmo com apenas fragmentos, o quanto aquilo significa para ela. O diretor acompanha essa mulher meio esmagada por uma dor que não consegue exprimir, que passa sem se importar por toda uma multidão em volta de uma TV. Que segue seu cotidiano arrastado, mesmo com a classe vazia.
E é a partir dela que o espectador faz contato com essa chegada, já que Villeneuve nem por um segundo sai de perto enquanto monta esse mosaico de impressões e relances dessa nave à partir das impressões da personagem. Um suspense que vai se criando até a incrível revelação dessa “concha”. Negra, dura, impessoal, parada a poucos metros do chão, mas ainda assim fazendo com que todos se tornem minúsculos perto de sua enormidade. Na sequência, ao inverter completamente esse “modus operandi”, o roteiro de Eric Heissener não deixa ninguém ter nenhuma impressão sobre os “pilotos” daquela nave, “você os verá logo, então apressem-se”.
A Chegada é construído justamente desse jeito, um jogo de impressões contrastantes. O que vem a seguir é sempre algo que foge do esperado. Foge daquele contexto que você demorou décadas de Sci-fi para formar.
E não fugindo da comparação estética com o monólito de 2001, a impressão é exatamente essa: Enquanto na mão de Kubrick o Monólito era quadrado, duro e refletia o pior da humanidade, a “concha” de Villeneuve, arredondada e nunca em contato com a Terra olha com esperança para o planeta. Tenta entendê-lo. Mas o que se vê na sequência não é bem isso e deixaria o Monólito orgulhoso.
Guardando parte das surpresas para o espectador que embarcar nessa viagem, o que se pode dizer é que em termos globais a humanidade mais uma vez não sabe o que fazer com sua “ferramenta”. E como o osso que vira arma, não são os ETs que trazem o fim do mundo, mas sim os próprios terráqueos. O caos vem de suas ruas e desesperança, ganância e medo. Vêm de seus líderes. Um sentimento que vem da culpa de saber o que a humanidade sistematicamente vem fazendo com civilizações menos avançadas desde os primórdios da história.
Mas A Chegada é muito mais contido, não sai daquela pequena base do exército dos Estados Unidos enquanto Louise e Ian tentar desvendar a razão desse contato. E assim como Villeneuve chacoalha suas impressões gravitacionais enquanto os personagens caminham por esse corredor “uterino” e chegam nessa câmara onde poderiam ver nascer uma nova humanidade, o resultado disso é uma trama complexa e inteligente sobre o tempo.
Sim, mais que qualquer contato extraterrestre, fim do mundo ou invasão alienígena, A Chegada é sobre o tempo. Como um palíndromo, ou um ouroboros. É sobre o quanto ele é cíclico e se completa. Mais ainda, é sobre como o que é futuro para você, visto por outra ótica pode ser passado ou até presente e, mesmo assim, fazer parte de sua personalidade. Ditar suas ações e o peso de suas decisões.
Melhor ainda (e aqui uma pitadinha de spoiler) A Chegada só funciona pois tanto Villeneuve quanto Heissener não só viram muitos filmes, como entendem de cinema, de sua linguagem e, principalmente, de suas técnicas. Sabem que a melhor coisa do cinema é ser enganado, como em um número de mágica, fazendo você olhar para o outro lado com o truque bem em sua frente. “Vendendo” para você uma estrutura tremendamente comum e esperando você se acostumar a ela, com décadas e décadas de montagem que criam uma certeza tão grande em seu cérebro que nem percebem o quanto está sendo enganados. A Chegada, de modo puramente técnico, quebra suas expectativas e dá um nó em sua cabeça que ficará por lá algumas boas horas depois do filme.
E deixando o spoiler de lado e voltando o texto, ainda que A Chegada mostre que você não sabe de coisa alguma, não esperava por nada daquilo e ficará arrepiado com tamanha surpresa. Mas pelo menos uma coisa você tem certeza, de que sairá dele com a impressão de ter visto um clássico do gênero que ainda será lembrado por várias gerações.
“The Arrival” (EUA, 2016), escrito por Eric Heisserer, baseado em um conto de Ted Chiang, dirigido por Denis Villeneuve, com Amy Adams, Jeremy Renner, Michael Stuhlberg e Forest Whitaker.