Preparem-se, vou comparar A Contadora de Filmes com Cinema Paradiso.
Cinema Paradiso, segundo filme do diretor italiano Giuseppe Tornatore e enorme sucesso de crítica, elenca o top list de onze em dez cinéfilos em todo o mundo. Ele evoca a nossa paixão pelo cinema dentro do clichê mais broxante de todos os tempos: o amor perdido. É um paralelo com a história do cinema, físico e metafórico, e seus altos e baixos. Uma jornada lúdica para os mais jovens e melancólica para os mais vividos. Seus personagens emergem de dentro do universo do filme e das memórias do autor, que lança sua jornada do íntimo particular de cada um de nós para o universal coletivo de uma sessão de cinema.
A Contadora de Filmes é uma fábula adaptada do pequeno livro do escritor chileno Hernán Rivera Letelier que se passa em uma cidade erguida para mineração e escrita por alguém com conhecimento de causa (o escritor era minerador). A adaptação cinematográfica parte dos personagens literários como universais desde sempre. Ele não chega a ser uma jornada de descoberta porque não sentimos os personagens mudando. Assistir ao filme é um processo burocrático em direção ao conhecido. O seu clichê é, tal como as figuras imaginárias com quem John Nash interage em Uma Mente Brilhante, acompanhar figuras que nunca mudam, seguindo suas conhecidas e objetivas trajetórias como objetos sendo lançados em um problema de física.
O roteiro escrito por Walter Salles e mais dois roteiristas é coeso e certinho a ponto de incomodar. Boa parte do texto dito pelos personagens são para encaixar determinado destino ou para justificar determinado rumo. Admiramos a dedicação em unir os pontos e fechar as subtramas. É a beleza matemática e objetiva de dois mais dois são quatro. A menos que você se identifique com a lenda do bom trabalhador braçal e sua família, não há emoções o suficiente atrapalhando a equação perfeita.
Cinema Paradiso carece de perfeição. Por mais que a beleza da infância pueril queira existir para sempre (o cinema ainda mudo, em preto e branco e engatinhando), e assim como as paixões mais avassaladoras, a vida acontece e atropela todos os envolvidos. Há drama, gritaria e choros. Nada é justificado por frases, mas pela essência da história cinematográfica acontecendo diante de nossos olhos. Como consequência das mais desejáveis, a falta de simetria em suas emoções o torna mais humano.
A Contadora de Filmes caminha do lado oposto. Quase como um cálculo científico aplicado à narrativa, as emoções são medidas em miligramas, os acontecimentos são narrados como uma receita de bolo. Há morte e assassinato relatados como um parágrafo do jornal de domingo. O cinema de A Contadora… lembra o teatro onde você pode ver as cortinas ao lado dos atores e o palco fajuto, mas tudo tão bem feitinho que encanta. E apesar de momentos cafonas como “de repente a vila ficou apenas em tons de preto e branco” há ainda as referências à sétima arte para dar uma cor.
Cinema Paradiso também pega carona nos filmes que passam na telona. Os trechos dos clássicos dialogam em um nível muito íntimo com o delírio coletivo das sessões de cinema, dentro e fora da sala. A ingenuidade brota “naturalmente” e exige do olhar mais aguçado um esforço extra para capturar o mecanismo maravilhoso com que histórias como essa nascem de um furor criativo dentro de um turbilhão de emoções. Os filmes da telona, apesar de obscuros para o espectador hoje, comentam essas emoções com sinceridade, apesar de sem uma clara conexão. Eles nunca substituem o filme de verdade ou auxiliam a história a se mover. São, como a icônica melodia do filme, um comentário acessório poderoso.
A Contadora de Filmes pega carona em filmes conhecidos por praticamente todos os cinéfilos, muito mais do que os vistos no clássico de Tornatore. Quem nunca ouviu falar ou assistiu Quanto mais Quente Melhor, faroestes de John Wayne e Spartacus de Kirk Douglas? A repetição incessante dos diretores e atores dos filmes citados (de Kirk Douglas, por exemplo, há também Glória Feita de Sangue) soa como marteladas inconscientes sobre o domínio hollywoodiano em pleno deserto chileno.
Por fim: cada época tem o Cinema Paradiso que merece. E este é muito bom. Tecnicamente admirável, competente nas entrelinhas. Um cinéfilo mais jovem se apaixonaria por esta história. Um mais vivido acharia melancólico este cinema chileno dirigido por uma dinamarquesa e co-escrito por um brasileiro.
“La Contadora de Películas” (Fra/Esp/Cl, 2023); escrito por Rafa Russo, Walter Salles, Isabel Coixet e Hernán Rivera Letelier; dirigido por Lone Scherfig; com Bérénice Bejo, Daniel Brühl, Sara Becker e Antonio de la Torre.