A Mais Preciosa das Cargas | A sensível arte da esperança

Enquanto certos filmes têm seus tamanhos medidos pela quantidade de dinheiro que o produtor tem de orçamento, podendo transformar um épico em um drama intimista por falta de alguns zeros, a animação não tem limites, com o mesmo dinheiro que faria um filme intimista, pode fazer um grande épico. Essa escolha está nas mãos e no olhar do seu diretor e na qualidade de sua equipe. A Mais Preciosa das Cargas não poderia ser feito de outro jeito, justamente por causa disso.

Nas mãos de uma produção “live action” ele seria um filme muito maior do que suas necessidades precisam, talvez até se distanciando daquilo que ele faz de melhor. Se transformando nessa animação dirigida pelo francês ganhador do Oscar, Michel Hazanavicius, a história baseada no livro de Jean-Claude Grumberg é um desfile de sensibilidade, ao mesmo tempo que pode ser do tamanho que quiser e precisar.

Talvez por isso seja tão importante que A Mais Preciosa das Cargas seja pequeno no começo para crescer até ser invadido pelo mundo ao seu redor. Principalmente, pois começa a contar essa história sobre um velho lenhador e sua esposa vivendo no meio de um floresta, afastados do mundo e convivendo com a solidão e uma dor da perda que os conformam, até que a mulher encontra um bebê abandonado ao lado dos trilhos de um trem que corta a floresta em um vai e vem como um relógio.

Hazanavicius tem em mãos essa história que tem um monte de camadas que vão sendo descascadas aos poucos. Ainda que a esposa do lenhador “reze” pelo “Deus do Trem” quase como a busca por uma esperança qualquer em sua vida, o veículo tem uma importância que vai sendo desvendada enquanto uma certa guerra parece chegar perto da casa do casal. A existência do bebê surge como um problema que discute um preconceito que vai além do bom senso e que marca aquele lugar e aquele momento daquele mundo.

Diante da possibilidade de ser uma animação, tudo isso é embalado por um visual absolutamente espetacular e lindo. Uma animação fluída e que remete a uma modernidade que conversa, tanto com o clássico, quanto com um contemporâneo até certo ponto oriental em sua suavidade e movimentação precisa e agilidade. E quanto mais vai longe na trama, mais tira da manga uma série de possibilidades visuais que vão tomando o filme e correspondendo ao peso de onde ela vai indo.

A sutileza dessa transformação vai se construída através de pequenos detalhes, o voo de um passarinho desvenda geograficamente aquele mundo e corrobora com a monstruosidade daquele trem indo e vindo. O que era um personagem afastado, se torna a dor da civilização, a tristeza com o limite que o ser humano consegue chegar. Acertadamente, Hazanavicius faz diferente do livro e não conta as duas histórias tão em paralelo, espremendo a primeira, a da esposa do lenhador com a criança, até o último pingo de esperança, para depois começar a mostrar o pai do bebê em uma situação onde não existe esperança. Na verdade sempre existe, mas as vezes, em situações como a dos dois (a esposa e o pai), é difícil não colocar isso em prova.

O resultado então é uma história que discute poeticamente esses dois lados de uma mesma moeda. Sem contrapor ou julgar, apenas acompanhar e ver o quanto essas pessoas conseguem ir além da violência e das imposições daquele mundo.

Hazanavicius consegue fazer isso de modo delicado em um primeiro momento, mas expõe e joga na cara do espectador essa segunda dor (do pai) sem esconder nada e até se permitindo, graças a animação, a chegar em um lugar de delírio e pesadelo que mergulham o personagem em um inferno de dor, culpa e cansaço de lutar. O que faz ser impossível não se emocionar, principalmente, por tomar tanto cuidado com aquele primeiro momento da história onde o lenhador acaba se transformando em um pai, enquanto o verdadeiro pai luta para não perder essa sensação, custe o que custar.

Como o próprio filme diz, o rumo que a história pega pode ser que tudo não seja verdadeira ou até que ela seja “maravilhosa” demais para isso, mas nas mãos sensíveis de Hazanavicius, A Mais Preciosa das Cargas se torna uma história poderosa sobre o quanto esses horrores acabam sendo menores do que a força do ser humano de vencer aquilo tudo.


“La Plus Précieuse de Marchandises” (Fra/Bel, 2024); escrito por Michael Hazanavicius e Jean-Claude Grumberg, à a partir do livro de Jean-Claude Grumberg; dirigido por Michael Hazanavicius; com vozes no original de Dominique Blanc, Grégory Gadebois, Denis Podalydès, Serge Hazanavicius e Antonin Maurel.


Trailer do Filme – A Mais Preciosa das Cargas

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