[dropcap]D[/dropcap]esde que o primeiro Uma Noite de Crime estreou em 2013, os elementos da política e do ultrapatriotismo norte-americano satirizados pela franquia tornou-se ainda mais forte – principalmente, é claro, depois que Donald Trump assumiu a presidência em 2017. Com isso, se por um lado é assustador perceber o quanto a distopia retratada em A Primeira Noite de Crime encontra-se próxima da realidade (e não apenas nos Estados Unidos, é claro), por outro, a inteligência com que os realizadores aproveitaram o clima caótico para reforçar o teor de sua mensagem resulta em uma obra complexa e que, mesmo sendo uma prequel, tem muito a acrescentar à franquia.
Ao contrário dos longas anteriores, que se passam em um futuro próximo, A Primeira Noite de Crime é ambientado em 2014 – começando, mais especificamente, dois dias antes do “experimento”: sete horas em que todos os crimes, incluindo assassinato, serão liberados no condado nova-iorquino de Staten Island. A ideia veio da Dra. May Updale (Marisa Tomei) e foi implementada por um dos funcionários dos Novos Pais Fundadores da América, Arlo Sabian (Patch Darragh), partido totalitarista que chegou ao poder graças, em grande parte, ao apoio da Associação Nacional de Rifles da América (surpresa, surpresa).
O partido tem argumentos mais “aceitáveis” sobre a escolha de Staten Island como palco do experimento, mas a verdade logo fica evidente: a maior parte da população da ilha é pobre e negra e/ou latina. Enquanto a parcela mais abastada dos habitantes podem simplesmente retirar-se, a classe baixa é atraída pelos 5 mil dólares pagos pelo governo para quem permanecer na ilha durante o experimento – a recompensa vai ser ainda maior para quem sair de casa para, quem, sabe, expurgar a raiva e o ódio na forma de assassinatos.
Pois é bastante significativo que o pior crime de todos seja aquele que torna-se sinônimo do evento – quem expurga é quem mata. Mas, afinal, será que nós realmente nos beneficiaríamos de uma noite de crime liberado? Nossa necessidade de ter algumas horas sem consequência alguma é mesmo tão grande que satisfazê-la geraria benefícios enormes para a economia e para o mercado de trabalho no restante do ano? Estaríamos realmente só esperando uma oportunidade de termos carta branca para matar?
Para qualquer pessoa sã, a resposta a essas perguntas é, obviamente, não. Então, como que a noite do expurgo tornou-se tão estabelecida na sociedade norte-americana? Por meio de dois recursos usados muito regularmente por políticos, sejam eleitos, sejam candidatos: as notícias falsas e a manipulação da informação.
Ao longo das primeiras horas de crime liberado, a população de Staten Island dedicou-se a inofensivas festas de rua regadas a música e álcool. O primeiro assassinato cometido, logo no início da noite, foi cometido por Skeletor (Rotimi Paul), sujeito claramente instável e que, portanto, não representa a suposta sede de sangue da sociedade comum. Diante disso, Sabian não fica apenas decepcionado, mas revoltado – os Novos Pais Fundadores precisam que a noite de crime seja um sucesso para que possa ser realizá-lo todo ano, pois, de que outra forma eles vão conseguir controlar a crise econômica do país?!? Ele decide, então, enviar representantes do governo disfarçados de civis – com os rostos cobertos por máscaras, algo que viria a tornar-se uma tradição do evento – para dizimar os moradores da ilha.
E é assim que A Primeira Noite de Crime estabelece que está interessado em complementar a franquia, e não apenas expandir uma história já conhecida. Nos filmes anteriores, ouvimos falar com frequência sobre as origens da ocasião e as motivações por trás da noite de expurgo, mas aquela era a história contada sob o ponto de vista dos vitoriosos. A realidade era algo que já havia sido pincelado anteriormente pela franquia: além de terem o assassinato em massa da população menos favorecida como objetivo principal.
Indo além, então, o longa ainda escancara o fato de que a importância do evento para o país foi totalmente fabricada. Assim, o diretor Gerard McMurray e o roteirista James DeMonaco adotam uma abordagem que, ao mesmo tempo em que é otimista em relação à natureza humana, também mostra-se cínico na medida quanto à crueldade do governo.
Aliás, é fundamental destacar também a decisão de James DeMonaco, criador da franquia e diretor e roteirista dos três primeiros filmes, de ceder a direção deste filme para Gerard McMurray – que, entre outros créditos, atuou como produtor associado em Fruitvale Station: A Última Parada. McMurray é negro e surge no comando de um longa em que todos os personagens centrais que sofrem nas mãos do governo opressor são negros ou latinos; o partido dos Novos Pais Fundadores, é claro, é exclusivamente branco e conta com uma maioria esmagadora de homens integrantes.
Aqui, a violência sistemática sofrida por aquelas minorias – especialmente negros – por parte da polícia, por exemplo, não precisa ser disfarçada como algo que aconteceu “sem querer”, mas como o absurdo e desumanização que realmente é – não é à toa que um determinado grupo chega a Staten Island para expurgar com seus integrantes vestidos de Ku Klux Klan.
Enquanto isso, atores como a sensível Lex Scott Davis, o carismático Y’Lan Noel e a trágica Mugga fazem um trabalho belo e natural – especialmente Davis e Noel, que têm a oportunidade de se entregar a diálogos inteligentes sobre a noite de expurgo enquanto ainda constroem uma química tocante entre os seus personagens. O longa desenrola-se com agilidade e complexidade até o seu final – que, considerando tudo o que vimos anteriormente, não poderia terminar de forma mais trágica.
Assim, A Primeira Noite de Crime é um exemplo perfeito de como a Blumhouse Pictures está crescendo e ampliando a quantidade de vozes femininas e de minorias em seu catálogo (vide a recente minissérie Sharp Objects, também deles). Estamos diante de uma franquia que sabe exatamente o que está fazendo e que, tendo se encontrado “subitamente” em meio a um contexto ainda mais complicado que poderia prever, conseguiu fazer excelente proveito disso para contar histórias impactantes e ainda assustadoramente relevantes.
“The First Purge” (EUA, 2018), escrito por James DeMonaco, dirigido por Gerard McMurray, com Lex Scott Davis, Y’Lan Noel, Joivan Wade, Mugga, Patch Darragh, Marisa Tomei e Luna Lauren Velez.