[dropcap]E[/dropcap]xiste um jeito naturalista de se fazer cinema no Irã. Talvez ele converse um pouco com o neorrealismo italiano diante do quanto verdadeiras são suas histórias e do como são esteticamente poderosos, mesmo econômicos. E quando se usa tudo isso para fazer um filme de terror, como À Sombra do Medo, o resultado é arrepiante.
E assim como boa parte do cinema iraniano (ou “Persa”, como eles gostam de se apontar), o filme de Babak Anvari está ali para contar uma história. Está ali para olhar de perto uma família diante de um problema muito maior que qualquer um deles consegue lidar e que os assombra e transforma suas vidas em um pesadelo: a Guerra.
Sim, acontece de a mãe e a filha terem que lidar com a presença de um Djinn, mas a “sombra” do título (assim como o “medo”), é a guerra entre Irã e Iraque no começo dos anos 90. Então, não se desesperem, o terror está lá e vai te maltratar, mas antes disso você vai entender como a presença de um ser demoníaco é o menor dos problemas delas.
Narges Rashidi e Avin Manshadi são mãe e filha, Shideh e Dorsa. A primeira descobriu que seu sonho de ser médica foi interrompido depois que a universidade a acusou de ter participado politicamente da luta pela libertação do país. Já a filha, com sua boneca, acorda no meio da noite para falar sobre alguém que está em casa. O que já a prévia do que vai acontecer, afinal, um filme de terror é um filme de terror seja aqui ou no Irã.
As duas acabam ficando sozinhas no apartamento onde moram, pois o pai é chamado para a guerra. Deixar o lar não é uma opção, é só ali que Shideh consegue ser quem ela realmente é, mãe, esposa, liberada dos costumes iranianos que oprimem as mulheres e fazendo exercícios com sua fita cassete da Jane Fonda. Anvari é sutil em termos ocidentais para criar essa personagem, mas para o “cinema Persa”, ele praticamente esfrega na cara do espectador o quanto Shideh é vista por todos como “aquela mulher que dirige” ou “que quer ser médica”. E ai está a força de À Sombra do Medo, não querer ser só um filme de terror.
Durante grande parte do filme, enquanto espalha armadilhas para o espectador ser fisgado mais para frente, Shideh e Dorsa são cercadas pela sombra dessa guerra. Precisam correr para um abrigo enquanto a cidade é bombardeada e enxergam o mundo através dessas janelas com fita para não estilhaçarem. Dorsa ainda tem alguns momentos de criança, mas eles começam a ir embora como um monte de areia que voa pelo deserto.
Assim como a guerra, os Djinn (que, aos poucos, na cultura pop foram se diluindo até chegar na figura dos gênios mesmo) chegam através dos ventos do desespero e do medo, e nesse caso (bem diferente do amigo do Alladin da Disney), com o intuito de tomar para eles a almas dessas pessoas (mais precisamente Dorsa). A única diferença é que a guerra não tem uma face, diferente dos Djinn, podem te arrancar alguns bons sustos que te farão pular da cadeira.
E nesse momento, estarmos falando de um filme de terror iraniano é um alívio estético, já que Anvari se esforça para fazer tudo aquilo que deve ter aprendido nos filmes clássicos de casas mal-assombradas. Assim como os japoneses e coreanos já fizeram um tempo atrás. Os ¿jump scares¿ estão lá, as figuras cruzando o fundo da tela também, assim como os pesadelos e a criança sendo controlada por uma força diabólica, mas tudo de um jeito diferente e, por que não: fresco.
Mesmo com você conseguindo imaginar tudo que pode (e vai acontecer), tudo chega diferente o suficiente para te fazer lembrar porque gosta tanto do gênero e não deixa de se divertir com ele. E melhor, Anvari ainda emprega um trabalho de câmera eficiente e que sai até da ¿calmaria Persa¿. Sua câmera, literalmente, “quebra o eixo” e se entorta para acompanhar um sonho da protagonista e uma presença no quarto, assim como corre pela casa tentando ver o visitante misterioso.
Anvari sabe o quanto é importante À Sombra do Medo ser aquele filme que não tem vergonha de acompanhar as lagrimas da protagonista enquanto dirige em um plano longo, mas, por outro lado, não se deixa levar por nenhuma obrigação de não picotar o filme enquanto as duas enfrentam o tal Djinn e tudo precisa ser mais acelerado. Tudo isso, fugindo do talvez mais irritante clichê do gênero: o escuro.
À Sombra do Medo mostra. Você verá o Djinn em suas várias formas, à luz de um apartamento todo iluminado sem receio nenhum de se esconder como as criaturas hoolywoodianas. Como se Anvari soubesse de um dos segredos mais bem guardados do gênero, aquele sobre o quanto o espectador tem mais medo do que vê do que do daquilo que não vê (os japoneses e coreanos já tinham percebido isso). O que não é visto cria o clima e te faz se agarrar à poltrona, mas é aquilo claro que te faz ver o filme atrás dos dedos tentando tapar seus olhos.
A Anvari ousa fazer um filme que esfrega na sua cara o terror, mas mais do que isso, te conta a história de uma mãe que precisa, à todo custo, provar para ela que pode ser ela mesma, pode cuidar da filha e de seu lar, pode continuar vivendo uma história que foi interrompida pelos costumes que cobrem sua cabeça, mas que, a cada passo, vê até sua filha colocando em prova se ela pode realmente ser essa pessoa forte diante do marido, dos mísseis, dos Djinn e do sobrenatural, da dor da perda, das ideologias e do amor pela filha… e isso tudo sim é arrepiante.
Confira os filmes da coluna 666 Filmes de Terror
“Under The Shadow” (RU/Jor/Qat/Ira, 2016) escrito e dirigido por Babak Anvari, com Narges Rashidi, Avin Manshadi, Bobby Naderi, Soussan Farrokhinia, Aram Ghasemy e Behi Djanatu Atai