Talvez a forma de um filme seja tão importante quanto a sua mensagem. Entregar aquilo que o filme quer discutir de modo eficiente enquanto se mantém belo é parte da eficiência do uso da linguagem cinematográfica a favor do filme. Talvez A Substância tenha tudo disso um pouco. Mas também ele até pode soar mais claro do que sua forma e sua mensagem poderiam ser, o que é um problema.
É lógico que o filme de Coralie Fargeat é um terror, então a mensagem tem a responsabilidade de se misturar com sua forma de modo a provocar o espectador. Sem o choque da imagem e o incômodo daquela situação, o terror se deixa ser levado por uma leveza que dispersa a atenção dos fãs. Por isso que todo fã de terror adora um filme que começa levinho e termina levando o espectador a ter aquela vontade de desviar o olhar ou se perder dentro da poltrona de tanta tensão.
A Substância percorre o primeiro caminho e o faz tão bem que deverá fazer seus espectadores saírem dos cinemas chocados e até indignados com tamanho crescimento das intenções visuais do filme. Por um lado, um prato cheio para quem vai até o cinema em busca desse choque, por outro, um prato mais cheio ainda para quem procura um filme com significado e que discute algo tão importante, dolorido e violento quanto A Substância.
Haverá ainda um “prato vazio” que achará que o filme explica demais, mas talvez essa seja uma intenção fácil de entender: é preciso compreender aquela mensagem, custe o que custar!
Mas até onde essa preocupação deveria ser tão levada em conta assim? Afinal, quem não entender as intenções de A Substância de modo mais sutil, com certeza não quer descobrir o que está escrito nas entrelinhas desse “body horror” moderno e deslumbrantemente perturbador.
Talvez um esforço grande demais de fechar a história nessa espécie de O Retrato de Dorian Gray que discute um assunto que vem violentando as mulheres do mundo desde bem antes de Oscar Wilde escrever o livro no final do século 19. Ao invés do quadro, entra em cena o próprio corpo da famosa apresentadora Elisabeth Sparkle (Demi Moore), que ao chegar aos 50, se descobre às portas de uma sociedade que a ignora como ser humano. A oportunidade de driblar isso é com um misterioso tratamento que, literalmente, cria uma versão 30 anos mais jovem dela, mas com uma condição: essa troca só pode acontecer de sete em sete dias.
É lógico que isso resulta em um exagero da versão mais jovem que acaba destruindo a versão original (como no quadro do clássico da literatura). Mas A Substância está mais preocupado em usar isso para discutir a real intenção do filme (que já deve estar clara). Através disso, Fargeat, que também assinou o roteiro, vai construindo esse caminhão de sensações que são verdadeiros pesadelos personificados na vida de qualquer mulher oprimida por essa sociedade que mais parece uma máquina de moer o feminino.
Com certeza seria difícil enumerar aqui todas questões tratadas por A Substância sem um olhar feminino (que esse que vos fala não tem). Talvez nem o olhar não feminino mais aguçado do mundo consiga enxergar tudo aquilo exposto no filme, mas nem por isso seja muito difícil entender aquilo que está sendo pedido a ser considerado como uma lição para compreender o mundo onde aquelas e qualquer mulher precisa viver. Ou melhor, sobreviver.
Coralie Fargeat toma então um caminho que conversa com um lúdico onde qualquer analogia se permite ser mostrada como parte de uma realidade distorcida pela visão dessas duas mulheres (ou uma só!) diante dos terrores que elas sofrem, dos mais sutis até os mais violentos. Tudo exposto, jogado na cara, jorrando e molhando toda plateia. E nessas horas, ou você entende… ou você entende.
Há quem possa achar até que Fargeat exagere quando deixa clara suas intenções em um segundo e terceiro momento dentro da história, mas talvez seja necessário dar esse passo além de um mero ângulo esquisito ou close-up de uma costura na pele. Seria um desperdício de seu esforço todo se o que está por trás do filme não fosse absorvido por sua plateia. Portanto, diferentemente de um primeiro momento com ângulos esquisitos que parecem mais perto do que deviam e também mais longe do que você (espectador) gostaria, a solução da trama é ampla, clara e dolorida. É impossível não olhar para aquilo e não pensar no caminho percorrido. Nas dores do espelho gritando contra qualquer beleza. No desespero de não ser aceita pelos homens ao seu redor. Na pressão de uma beleza que quebra qualquer sanidade. No medo da velhice. Enfim, não faltam questões a serem discutidas e pensadas.
Mas a diretora talvez tropece na tentativa de expor tudo isso e caia em sugestões meio óbvias e até preguiçosas, com uns flashbacks esquisitos e ações expositivas demais e que deixam os espectadores com a impressão de estarem tendo suas inteligências colocadas em prova. Porém, em um mundo onde a misoginia parece uma característica mais comum do que a qualquer um gostaria, colocar a inteligência à prova de alguém não chega a ser um questionamento para o filme.
Portanto é preciso mesmo tratar seu público como burro, afinal o filme só é necessário de ser visto, porque muita gente ainda não entendeu a existências desses horrores que a sociedade impõe nessas mulheres. Nessas e em todas outras. Parece panfletário, mas é apenas uma realidade triste que A Substância usa para sustentar suas metáforas e terrores. Que deveria chocar não pelo monstro distorcido, mas sim por aquilo que ele representa.
Mas conhecendo o público (e o mundo), isso não vai acontecer. É uma pena e fará que com mais filmes com A Substância continuem existindo e sendo levados em conta. Enquanto isso acontecer, não tem jeito, é preciso mesmo falar com o público como se ele fosse tapado e ignorante. Porque talvez grande parte dele ainda seja. Mas talvez (também) esse público não vão ver o filme. Um paradoxo difícil de lidar.
“The Substance” (UK/Fr, 2024); escrito e dirigido por Coraline Fargeat; com Demi Moore, Dennis Quaid e Margaret Qualley