Açúcar é o novo filme de ficção da dupla de diretores e roteiristas Sergio Oliveira e Renata Pinheiro (Sangue Azul e Amor, Plástico e Barulho) e dentro de suas capacidades de extrair metáforas do cotidiano, aqui estão dois cineastas viciados nisso.
E se essa característica pode gerar bons momentos nesse e em outros filmes, é ao mesmo tempo o que impede seus trabalhos de atingir a maturidade necessária para que parem de ser apenas isso e atinjam a fase adulta.
Sofrendo enormes influências da temática de Kleber Mendonça Filho com a questão da terra e do ser coletivo, o filme conta a história de Maria Bethania Wanderley, em que seu próprio nome, misto de referência brega e genérica ao MPB e ao nome do engenho que herdou, já denuncia o desdém sobre o individual, sobre a personalidade e sobre pessoas em geral.
O ódio direcionado à classe que Bethania representa pode ser visto de todos os ângulos, mas o mais icônico é quando ela faz chapinha em seu cabelo, o que representa, na visão do filme, a negação de suas origens étnicas, portanto coletivas. Bethania é uma pecadora da ideologia presente no longa porque se recusa a usar a identidade escolhida como heroica.
Porém, ao mesmo tempo, a cantora Maria Bethania não só é baiana de nascença como irmã de outro cantor, Caetano Veloso, associado à resistência artística, a Tropicália, em tempos de intervenção militar. A Tropicália, ou Tropicalismo, foi um movimento que buscava unir vertentes musicais completamente diversas, como os ritmos brasileiros e africanos com o pop rock. Seu objetivo era abrir um campo para reflexão sobre a história social, e não há nada mais arredio à realidade e adorador de palcos do que usar a expressão “história social”.
É com esse caráter de fusão de origens que Açúcar deve ser entendido e resumido. O filme não vai muito além disso, e com o tempo vai lembrando cada vez mais os filmes de Mendonça Filho, como Aquarius e O Som Ao Redor, mas aqui há a problemática de conectar o espectador usando personagens caricatos, como a madrinha classe média alta de Bethania, ou estereotipados, como a faxineira negra ligada a rituais africanos Alessandra. Até manter o nome associado ao local onde o dono do engenho morava na época dos escravos, Casa Grande, é caricato, e vulgar.
Bethania e sua madrinha são fantasmas de um passado de conflitos entre os donos da terra e os que nela trabalhavam, mas agora os antigos donos estão falidos e os trabalhadores estão unidos, com terras compradas e com uma parceria estrangeira para transformar a região em uma zona turística e histórica. E mais uma vez voltamos para a história social, o tema eterno dos filmes da elite esclarecida, martelado várias vezes para atingir o contorno perfeito que entregue ao espectador as curvas e nuances exatas sobre esse sistema de exploração eterno.
Infelizmente o retrato, ou melhor dizendo, a escultura que representa essa visão, prefere ser caricata e parcial em vez de buscar um relacionamento mais próximo dos seres humanos. A escultura vem com partes faltando, convenientemente escondidas para debaixo do tapete. E mesmo que a exploração em si seja o tema fundamental, o cinema exige vilões e mocinhos, mesmo que eles troquem de papel daqui a pouco.
Por isso a turma da cidade abraça essa vilania. Eles chegam como forasteiros em terras que não mais os pertencem. Não entendem nada da nova dinâmica, da nova ordem social, e se agarram fortemente ao passado glorioso que tornou possível suas vidas mesquinhas, mas confortáveis. São fracos, ainda por cima, mas é uma fraqueza explicada em cada milímetro do rolo deste filme. Está no lustre central, tão celebrado e tão cheio de poeira. Está na antiga senzala, tão nauseante e tão carente de significado.
Os símbolos da cultura dos mocinhos vão sendo utilizados para narrar uma história sem bússola moral. Sonhos em noite de lua minguante, transes ritualísticos que recebem mensagens dos antepassados, figuras animalescas surgindo ao fundo, indissociáveis da própria natureza. Esses elementos no filme são esteticamente impecáveis, abertos para serem processados pela nossa mente inconsciente e coletiva.
Porém, mais uma vez atingindo a frustração, a beleza de um filme não sustenta um filme sem valores, e os ditos heróis são mera consequência do impessoal processo histórico. A história social, olha ela aí, sem significado, apenas dentro dela mesma.
Maeve Jinkings não por acaso participa do elenco dos filmes de Mendonça Filho citados, mas principalmente, de Amor, Plástico e Barulho, dirigido por Renata, escrito por ambos os diretores deste filme. Jinkings é uma incógnita a ser desvendada, e a cada novo filme da atriz se torna mais difícil encontrar a resposta para sua atuação. Ela cria e recria momentos eternizados pela sua expressão impassível, transitando entre eles pelo palco mundano dos diálogos fáceis.
Nessa dinâmica entre os dois, surge uma energia ainda inexplicável para sua atuação, que permanece em nossa memória o tempo necessário para percebermos que já nos esquecemos.
“Açúcar” (Bra, 2017); escrito por Sergio Oliveira e Renata Pinheiro; dirigido por Sergio Oliveira e Renata Pinheiro; com Maeve Jinkings, Dandara de Morais e Magali Biff.