Ainda Estou Aqui | O lado certo da história

Quando a memória nos é arrancada, só nos resta lutar por ela. Não se permitir esquecer e nem ser esquecido ou esquecida. Quase quatro décadas depois do fim da Ditadura Militar no Brasil, há quem ainda faça questão de ignorar esses anos de violência, dor e opressão. Mas até quando a capacidade de lembrar se esvai, certas coisas são inesquecíveis, como o amor de Eunice Paiva por seu marido Rubens Paiva em Ainda Estou Aqui.

O novo filme de Walter Salles é sobre esse olhar perdido. São vários momentos durante essa história escrita por Murilo Hauser e Heitor Lorega, a partir do livro de Marcelo Rubens Paiva, que tudo no filme se resume a um olhar. Talvez para procurar entre fotos de “subversivos” ou para olhar no meio da escuridão em busca de algum fio de esperança. Em outros momentos, um olhar perdido na saudade de algo que nunca acontecerá.

A visão de sua câmera pode ser substituída pela gravação amadora da filha mais velha em 8 mm. Quase como se visse ali o único jeito de nunca perder aquelas lembranças. Ou até na caixa cheia de fotos que montam esse mosaico, a vida interrompida desse homem que congelou como em um clique da máquina fotográfica a vida de todos à sua volta. Que ainda estão aqui, registradas. Impressas na mente, nos filmes e nas fotografias.

Eunice sem memória já no final da vida é interpretada por Fernando Montenegro em uma participação especial. No resto do tempo a personagem está com a filha dela, Fernanda Torres em um trabalho que casa perfeitamente bem com a sutileza e humanidade de Walter Salles. Em 1998 o diretor levou Fernanda Montenegro até o Oscar com Central do Brasil, no mesmo ano também chegou aos cinemas seu O Primeiro Dia, com Fernanda Torres. Hoje e 26 anos atrás ele abriu sua câmera para elas de modo tão livre pela mesma razão: suas genialidades.

A Eunice de Fernanda Torres poderia se perder em qualquer tipo de melodrama, mas o resultado aqui é força e transformação. Uma personagem que cresce com a história e vai tentando se adaptar a esse novo mundo, afinal seu antigo foi destruído. É maravilhoso ver essa mulher no começo do filme vivendo uma vida que lhe é arrancada do dia para noite sob a mira de um fuzil. Não o disparo, apenas a opressão e o medo. Um capuz que lhe é colocado e apaga seu mundo. O que surge depois disso é um filme que deixa de ser solar e cheio de esperança para se tornar escuro e duro. Torres não se permite ir para esse lugar, mas sim surge como uma chama de esperança no meio de toda dor.

Salles constrói claramente essa discrepância. Mesmo perdida na escuridão do DOI-CODI, sem saber sequer quantos dias está lá, a Eunice de Fernanda Torres é firme, encarando de frente seus inquisidores e saindo de lá pela porta da frente e com a cabeça erguida. Ainda Estou Aqui não é nunca um filme sobre uma vítima, mas sim sobre uma mulher que só se permite a fragilidade enquanto esfrega seu corpo com uma força desumana embaixo do chuveiro, como se tentasse, não só limpar a sujeira daqueles dias, mas também deixar para trás aquela dor, afinal a luta continuará no dia seguinte.

Em certo momento Eunice aponta para a filha: “Quem cuida das coisas agora é tua mãe!”. Ainda Estou Aqui é também sobre essa mãe. É lógico que tudo se esvai pelos seus dedos com o “sequestro” de seu marido pelo regime militar, mas desde o começo Salles busca Eunice como o centro de sua história. Desde a liberdade boiando no mar, até na grande apresentação da família na praia, com a câmera passando pelos filhos e culminando com a adoção de um cachorrinho. Naquele momento, tudo gira em torna dela, onde ela está e se ela já aceitou o cachorro em casa. Ela é a espinha dorsal daquele microcosmo que será destruído pela Ditadura.

O diretor não tem pressa, nem nesse começo e muito menos durante boa parte da primeira metade do filme. A recriação de época é fenomenal não só pelo trabalho da direção de arte, mas também pelo cuidado que Salles tem de construir esse mundo de modo operacional, vívido e pulsante. Toda dinâmica do Brasil na época é esclarecida por meio das sutilezas, conversas, olhares e preocupações. O caminha cheio de soldados cruzando a avenida na praia é uma mancha verde-oliva no cenário de areia e sol. O olhar de Eunice percorre essa violência visual como se já estivesse prevendo o que vem.

Enquanto os olhares de cada personagem tenta entender o que está acontecendo, Salles monta esse mosaico de impressões criando uma família unida e humana de um jeito absolutamente poderoso, meticuloso e delicado. Cada filho é único e tem seu espaço na trama. Sofrem de um jeito de cada um e lidam com aqueles acontecimentos de um jeito próprio. Só com isso é possível que Ainda Estou Aqui seja tão forte.

Selton Mello vive esse Rubens Paiva tão impecável quanto Fernanda Torres, mas de um jeito diferente, como se soubesse que tem pouco tempo para criar esse homem que é a face da esperança, mas com a intensidade de alguém que luta por uma liberdade maior que a dele. Seu personagem não é frágil, mas o medo está sempre em seu olhar. Como se soubesse que cada momento com cada um dos filhos é tanto único, quanto último. Selton Mello sabe que é a lembrança que ficará para trás e faz isso como uma simpatia e paixão que imprimem esse amor por ele no filme. Tanto para a família, quanto para quem está do lado de cá da tela.

Ainda Estou Aqui conta essa história sobre como Eunice precisa sobreviver em um mundo que não se importa com ela. Um mundo de opressão que fez de tudo para sumir das lembranças a existência do ex-deputado Rubens Paiva, mas que encontrou uma protagonista maior do que seus esforços violentos de apagamento. O que Salles faz é reconhecer todo o poder dessa história e criar esse filme onde tudo se encaixa, do visual até cada olhar. Dos personagens e suas dores até cada momento onde essa mulher está lutando para, mais do que sobreviver, ser o escudo que protege sua família. Como se exigisse que as lembranças deles não fossem aquelas obscurecidas pela opressão da Ditadura Militar. O vazio vai sempre estar lá, como na conversa dos dois filhos mais novos sobre o momento onde “descobriram” que o pai estava morto, mas Eunice não perdeu essa luta e eles sabem disso.

A caixa de fotos abarrotada de lembranças é o que sobra. O sorriso na imagem para a entrevista é o que fica. O olhar do Rubens Paiva apaixonado pela família é o que marca. Walter Salles está claramente interessado nesses pequenos momentos onde o que resta é a lembrança imaculada pelo amor e pela força de uma luta maior do que qualquer vida. A Ditadura Militar Brasileira tentou destruir essa família, mas o resultado foi criar uma força maior que ela. Uma força movida a esperança e que arranca até um olhar novamente apaixonado mesmo diante da ausência de mais lembranças daquela idosa em uma cadeira de rodas.

Walter Salles sabe que Ainda Estou Aqui é um filme sobre aquela foto da família inteira no final, com o personagem de Marcelo Rubens Paiva saindo da autoria do livro para pedir pelo mesmo sorriso que a mãe pediu anos atrás. E essa luta a Ditadura não tem como vencer. Perdeu lá atrás para mulheres como Eunice Paiva e vai continuar perdendo enquanto filmes como Ainda Estou Aqui mostrarem os seus absurdos.

Assim como a banda Dead Fish cita na canção do disco Ponto Cego, “o lado certo da história não tem sangue nas mãos”, Walter Salles sabe que para não deixar que essa história seja esquecida, precisa mostrar esse “lado certo”. Mostrar esse lado vencedor e dar nome a ele: Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva.


“Ainda Estou Aqui” (Bra, 2024); escrito por Murilo Hauser e Heitor Lorega, à partir do livro de Marcelo Rubens Paiva; dirigido por Walter Salles; com Fernanda Torres, Selton Mello, Valentina Herszage, Maria Manoella, Bárbara Luz, Luiza Kosovski, Guilherme Silveira, Cora Mora, Marjorie Estiano, Antonio Saboia, Olivia Torres, Gabriela Carneiro da Cunha, Humberto Carrão, Maeve Jinkins, Dan Stulbach e Fernanda Montenegro.


Trailer do Filme – Ainda Estou Aqui

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