[dropcap]A[/dropcap]mbientado “na Europa de 20 mil anos atrás”, como um title card declara, Alfa utiliza um visual absolutamente deslumbrante para contar a história da “amizade que mudou o mundo”. Demorando para engrenar para além de suas qualidades estéticas, o longa ganha força quando passa a focar no protagonista e em sua companhia canina. Mesmo assim, apesar da ambientação pré-histórica, o que temos aqui é uma obra que jamais alcança algo além do convencional.
O grupo comandado por Tau (Jóhannes Haukur Jóhannesson) aproveita a inexplicavelmente longa jornada de caça em busca de comida para fazer seus jovens passarem por testes que provarão se eles estão prontos para se estabelecerem como homens — ou seja, matar animais, produzir armas, caçar e outras demonstrações de “masculinidade”. Mas o filho de Tau, Keda (Kodi Smit-McPhee), “lidera com o coração, não com a lança”, como declara a mãe do garoto, Rho (Natassia Malthe). A prova vem logo em seguida, quando ele hesita e então se recusa a matar um javali ferido por seu pai. Algum tempo depois, durante a tal grande caçada, um acidente faz com que Keda seja dado como morto. Depois de recuperar a consciência e de tentar reencontrar o grupo seguindo os marcos deixados por seus ancestrais ao longo do caminho, Keda depara-se com um lobo ferido e decide cuidar dele. Assim, aos poucos, eles vão ganhando a confiança um do outro e tornam-se melhores amigos enquanto Keda continua tentando achar o caminho de volta para casa.
Alfa é embalado por uma narração ocasional que, logo na primeira cena do filme, faz questão de explicar a mensagem da história e praticamente resumir o que veremos a seguir, como se não fossemos capazes de compreender o que há por trás daquela amizade e o quanto a relação entre humanos e cães é especial até hoje. Aliás, vale destacar que na versão original do longa, a narração tem a voz de Morgan Freeman, o que certamente a deixa mais épica do que a dublagem aguada que escutamos na versão brasileira. Isso vale também para os diálogos, que originalmente estão em um idioma rudimentar criado especialmente para a produção; enquanto isso, em português, temos uma série de frases extremamente simplistas em uma versão moderna do idioma, o que faz com que o povo retratado aqui não fale de uma forma que parece pré-histórica, mas apenas detentora de um vocabulário e de uma habilidade de expressão oral bastante limitadas. Mas o longa chegou ao Brasil apenas dublado, ou seja, quem quiser conferir o trabalho por trás de seu idioma original vai ter que esperar mais um pouco.
A partir do encontro entre Koda e o lobo que ele mais tarde batiza de Alfa, o longa torna-se mais envolvente, já que a amizade entre eles é realmente encantadora. Entretanto, nesse sentido, é uma pena que Smit-McPhee não seja um ator mais competente e expressivo, já que ele passa a maior parte do tempo interagindo apenas com seu parceiro de quatro patas. Mesmo assim, trata-se de uma história sobre “um garoto e seu cão” como outra qualquer, diferenciada apenas pela época em que se passa. Até mesmo o suposto ineditismo do ocorrido é pouco aproveitado, já que, depois da hesitação inicial, tudo desenrola-se com facilidade entre os dois — isso fica ainda mais claro pelo fato de que o lobo é “interpretado” por um cão lobo checoslovaco, uma raça relativamente recente.
Enquanto isso, na tribo liderada por Tau, é frustrante ver como personagens femininas como uma shamã e uma caçadora são deixadas de lado durante quase todas as cenas em que acompanhamos o grupo — e mesmo Rho resume-se a chorar de medo ou pelo perda do filho. Mas são mesmo os cenários deslumbrantes e desertos de Alfa que oferecem um verdadeiro espetáculo. Na imensidão do mundo pré-histórico, fenômenos como pores do sol, nevascas, a aurora boreal e até mesmo um dia nublado tornam-se uma explosão de cores intensas que nos mergulham em cada plano no qual o diretor Albert Hughes passeia com dinamismo. O problema está quando os planos abertos aproximam-se e nos deixam admirar também a fauna local, que, com exceção do próprio Alfa, é formada por animais criados a partir de efeitos digitais que deixam a desejar.
Com isso, Alfa certamente mostra todo o seu esplendor em uma sala IMAX, mas desperdiça sua excelência técnica e seu contexto diferenciado para contar uma história familiar de forma convencional e com pouca personalidade. Para tanto, contribui muito o fato de que os espectadores brasileiros sequer terão a chance de conferir nos cinemas a versão original, falada em um idioma criado especialmente para o filme — ou seja, um de seus poucos elementos realmente originais.
“Alpha” (EUA, 2018), escrito por Daniele Sebastian Wiedenhaupt, dirigido por Albert Hughes, com Kodi Smit-McPhee, Jóhannes Haukur Jóhannesson, Natassia Malthe, Leonor Varela, Mercedes de la Zerda, Jens Hultén, Priya Rajaratnam, Marcin Kowalczyk e Spencer Bogaert.