[dropcap]É[/dropcap] realmente difícil escrever sobre obras de arte estabelecidas, já que os anos que passam são sempre responsáveis por criar quase um escudo ao redor dessas peças. Não seria pretensioso, à época, recorrer ao desnível do horizonte por trás da Monalisa como um descuido geométrico, mas hoje, depois de inúmeras pesquisas e teorias, o mesmo acaba tornando-se parte da lenda. No cinema, como não poderia de ser, o problema acaba sendo pior ainda.
Quando um filme se transforma em clássico, a crítica especializada da época tem até o direito de renegar, mas quem vem depois disso apenas o de apreciar, já que teve tempo para admirar, discutir, desvendar e se apaixonar por aquilo. Em 1979, tirando alguns poucos críticos, Alien, uma produção que misturava ficção-científica com terror, acachapou a todos e entrou para história do cinema. Literalmente, já que em 2002 se tornou parte da Biblioteca do Congresso do EUA, no National Film Registry (uma lista que chega a apenas 500 e poucos filmes).
Mas talvez tudo isso tenha realmente uma explicação, na verdade quase uma conversão de possibilidades que acabaram rumando para um mesmo ponto (algo como um eclipse). Tanto que, após esse “8° passageiro”, três filmes depois (por favor, esqueçam qualquer encontro com qualquer Predador) o que se vê é apenas o desgaste dos anos e das ideias (mesmo que o nível tenha se mantido alto), mas nunca sem nem chegar perto dessa obra-prima.
Um almoço que entrou para a história
Aquela “conjunção estelar” começa com Dan O´Bannon, um estudante de cinema que durante a faculdade acabou filmando um curta metragem com John Carpenter chamado Dark Star (que depois disso foi transformado em um longa), uma mistura absurda entre comédia e ficção-científica. Encantado pela possibilidade de criar seus próprios mundos O´Bannon então decidiu largar uma proeminente carreira como técnico de efeitos especiais para virar escritor.
Alien nasceu enquanto O´Bannon se via sem casa e sem emprego, depois de ter apostado tudo em uma adaptação da obra de Frank Hebert, Duna, na qual seria supervisor de efeitos especiais.
Do outro lado do Atlântico, enquanto a FOX se impressionava com o roteiro de O´Bannon, Ridley Scott fazia sucesso com Os Duelistas e, praticamente, fechava um contrato para dirigir o épico Tristão e Isolda, mas acabou se empolgando com as possibilidades do recém lançado por George Lucas, Star Wars, e aceitou mudar seus planos. Bem verdade, mais uma vez O´Bannon, escreveu certo por linhas tortas, já que fez de tudo para que as principais escolhas da FOX, Peter Yates (de Bullit), Jack Clayton (de O Grande Gatsby) e Robert Aldrich (Os Doze Condenados) caíssem, já que achava que nenhum deles fosse levar seu filme a sério. E possivelmente não o fariam.
Em 1978, Yates, que era o mais novo das três opções, com 49 anos (Aldrich tinha 60 e Clayton 57), já tinha uma bagagem de mais de dez filmes, enquanto Scott, com 40, ainda se deslumbrava com as possibilidades do cinema. E talvez o primeiro sinal disso tenha sido encarar o roteiro de O´Bannon como um filme de terror e não como uma ficção-científica. A diferença era que, ao invés de uma família de canibais no meio do Texas, seus personagens teriam que encarar uma espécie gosmenta de alienígena.
Dereck Malcolm, crítico do The Guardian percebeu isso na mosca ao citar em seu texto que o filme era, na verdade, “uma mistura de O Monstro do Lago com O Massacre da Serra Elétrica”. E são exatamente essas concepções (visuais, de narrativa e estrutura), que hoje parecem óbvias, que mais engrandeceram o filme. Ideias que iam na mesma contramão de Star Wars e fizeram Scott escolher criar um futuro sucateado que fugia da limpeza do 2001 de Kubrick e fazia todos lembrarem que, mesmo no futuro (durante o segundo filme se descobre que o ano era 2122), alguém tinha que fazer o trabalho sujo. Nesse caso a Nostromo, uma espaçonave cargueiro que fazia o caminho de volta para a Terra depois de um trabalho.
Algo como “caminhoneiros do espaço” que acabam tendo que parar em um planeta ao receberem uma transmissão desconhecida. E é exatamente nesse primeiro momento que Scott faz aquilo que mudaria a história do cinema, já que o espectador em nenhum momento é colocado dentro do filme que espera ver. Tudo é sujo e pouco anatômico, nada parece acontecer durante quase a primeira hora de filme e quando se percebe, Scott e O´Bannon, simplesmente, resolvem bagunçar todos conceitos do espectador e nada mais é aquilo que parecia ser.
Mas “nada parece acontecer” por que, de modo sutil e genial, Scott estrutura seu filme para que, não só a descoberta dessa espécie de aranha gosmenta que gruda no capacete do personagem de John Hurt (Kane), mude a história do filme (como em um ponto de virada tradicional), mas sim que, por um segundo, o espectador nem saiba para quem torcer.
Hoje é fácil aceitar que Ripley se torne a heroína do filme, mas assim como no clássico Psicose, onde Hitchcock mata sua “protagonista”, Janet Leigh, antes de “realmente” começar o filme, Scott decida ignorar a presença de Ripley até que ela se torne o foco da atenção daquela história. E talvez heroína não seja a palavra correta, mas sim sobrevivente.
Na verdade, durante todo tempo Scott se diverte com isso, já que acaba tendo liberdade total dentro do roteiro para tomar o caminho que preferir, pois o texto de O´Bannon não se aprofunda em nenhum personagem da tripulação em termos de gênero (e os nomes “sem sexo” é uma prova disso). Scott olha primeiro para Hurt (Kane), que mais tarde se tornará um dos pontos principais da história, passa por Dallas (Tom Skerritt), capitão da nave e protagonista óbvio, e apresenta esse esquisito Ash (Ian Holm), curiosamente o único que traja um uniforme vestido de forma impecável e nem parece saído de uma capsula de animação suspensa. Durante toda primeira parte do filme, Ripley (Sigourney Weaver, única atriz desconhecida de todo elenco) quase não existe e só aos poucos vai entrando na história, mesmo, curiosamente, sem nunca fazer parte do ponto de fuga (aquele ponto onde, naturalmente, se olha primeiro na tela) dos planos de Scott.
Mas talvez não haja dúvidas, Ripley pode até ser a heroína/sobrevivente, mas o(a) protagonista é o Alien.
É sua presença que faz com que aquela aparente união entre os personagens vá desabando, primeiro criando esses dois lados, um que quer que o “espécime” entre na nave (pela saúde de Kane) e um outro que sabe o quanto isso pode ser perigoso. Scott e O´Bannon então dividem a nave entre aqueles que querem sobreviver e aqueles que se tornarão as primeiras vítimas.
A dupla então desconstrói tudo que até aquele momento construiu, e a vida de Kane e a união desses personagens deixa de ser importante. Pior ainda, como se fingisse enganar o espectador ainda uma última vez, faz com que o clima da nave volte ao normal, e assim como já tinha feito no começo (e ai criado uma sensação de segurança ambiental), faz daquela mesa cheia de comida o começo real daquele filme de terror que se ensaiava. Um almoço que mudou a história do cinema.
O 7° Passageiro
Mas ainda antes de chegar a criatura em si, existe um terceiro ponto (além dele e de Ripley) que move a genialidade de Alien: Ash (e nesse ponto, se você ainda não sabe a verdadeira natureza do personagem, talvez fosse melhor ir ver o filme).
Além do olhar quase perdido e cético que Ian Holm emprega em seu personagem em toda sua apresentação, de modo sensacional, parece criar essa pessoa incomodada, como se não fizesse parte daquele ambiente. Deslocado, tanto em seu visual, quanto em sua interação, mas sempre parecendo entender algo mais que os outros. É ele que cria o primeiro conflito entre os tripulantes (já que sabe da diretriz da companhia) e que parece proteger a criatura mesmo colocando em risco a vida dos outros (o que mostra ainda mais seus planos, já que vai contra o que parecia estar fazendo).
E Scott tem a sensibilidade de traçar esse personagem, mesmo sendo um androide (ai o Spoiler!) de modo ao espectador se enganar com o olhar de admiração com que Ash sempre olha para a situação. Diante de toda surpresa da cena onde Kane “dá vida” ao pequeno alien, Ash parece atônito e apaixonado por aquilo, e, como se por um segundo esquecesse que precisaria demonstrar qualquer tipo de sentimento e manter seu disfarce, é o último a tomar qualquer providência. É Ash quem encara aquele monstro como um “organismo perfeito” e até lhe permite ter uma humanidade quase perturbadora ao se referir à ele como “filho de Kane”. Por fim, é Ash quem cria a verdadeira mítica que carrega toda franquia, onde aquele monstro não é só um assassino, mas sim uma arma perfeita.
O 8° Passageiro
Não é à toa que O Massacre da Serra Elétrica seja citado por Scott, e é justamente essa visão que tenha criado toda emblemática da série, transportando, de modo claro e sem floreios, toda estrutura que os filmes do gênero (slasher) se faziam cumprir. A diferença era que “no espaço ninguém vai ouvir seus gritos”.
Olhando de modo simples, primeiro ele apresenta suas vítimas, faz você se acostumar com todas, escolhe (em segredo) sua última sobrevivente, começa a matança e, no fim de tudo, ainda surpreende o espectador que achava que tudo já estava resolvido. E também como um bom slasher, conta com um visual aterrador do assassino à seu favor.
Nesse momento entra na equação a visão surreal, fantástica e sexy do artista plástico suíço H.R. Giger.
Antes mesmo de Scott encarar o Alien com sua câmera é do artista plástico a responsabilidade de criar um mundo onde todos estágios da criatura (do ovo ao adulto, passando pelo “facehuger” e até por aquele sempre simpático “bebê alien”) pudesse existir. Giger ness momento, pelo menos na opinião de Scott, resolvia o problema mais importante que o filme poderia ter, já que sem uma criatura assustadora e com personalidade suficiente para conquistar/amedrontar o espectador o resultado poderia ser pífio.
Por isso, a criatura adulta, gosmenta e esguia, negra e mortal se forma com tanta força na cabeça de todos. Durante boa parte do tempo em que aquela tripulação descobre o interior daquela nave alienígena o pouco que se pode ver é algo visceral, como um órgão interno talhado em metal. E tudo isso se completa com a imagem final, que incomoda o espectador por ser humanoide demais, seduzir com seu lado orgânico (e fálico) e se tornar ameaçadoramente sem sentimentos, implacável e instintiva.
Mas, visualmente falando, é de Scott a responsabilidade de criar esse Alien, principalmente dentro da cabeça de quem estava sentado naquele cinema em 1979. Mesmo apresentando a criatura para o espectador de modo claro e sem alarde em um plano escuro (que, possivelmente, a maioria das pessoas nem acaba percebendo), Scott parte de um dos princípios que mestres do suspense como Hitchcock (e na literatura fantástica, gênios como H.P. Lovecraft) sempre seguiram: não importa o que se vê, mas sim o efeito daquilo que se acha que se viu. Para Scott, (talvez assim como o Chutullu de Lovecraft) o Alien é como um mosaico, várias peças que vão se formando no imaginário do espectador, já que ele sabe que nada é tão amedrontador quanto a imaginação do ser humano.
É lógico que essa opção faz com que grande parte do filme seja resumida a aqueles ataques/sustos no escuro, mas a imersão do espectador nesse momento é tão grande que é difícil não sofrer com os personagens a sensação claustrofóbica e ameaçadora da situação, ainda mais com um monstro a sua espreita. Pior ainda, é com um monstro que se forma em sua cabeça que se permite esse final nervoso e à flora da pele.
Mais que uma calcinha branca
Sem perceber, de uma hora para outra, o espectador então acorda e percebe o quanto o Nostromo é um enorme labirinto de corredores apertados que amontoa seus personagens (até aquele momento, Scott nunca demonstra o quanto eles não tem espaço).
O ápice disso é espremer Dallas em um duto de ar. Scott (com a ajuda da montagem precisa de Terry Rawling e Peter Weatherley) dá seu show e empurra, quase à contragosto, seu espectador nesse mundo histérico, onde o “bip” do sinalizador aumenta cada vez mais, o corredor diminui, Dallas vai ficando cada vez mais e mais perto das paredes, Ripley mais ainda no controle da situação e Lambert (Veronica Cartwright) se quebra em mais pedaços ainda (já que ela parece ser a representação do nervosismo e da cegueira que qualquer um teria diante de todo terror).
O resto é história, ainda mais em uma década onde o cinema de Hollywood fazia de tudo para se redescobrir e O´Bannon e Scott preferem então realizar o trabalho precioso de lembrar o espectador o quanto o capricho visual e narrativo ainda era importante, assim como a coragem e a vontade de ser levado à sério mesmo em gêneros por vezes considerados menores, como a ficção-científica e o terror, bebendo em fontes como Terror no Ártico, O Terror Que Vem do Espaço e o livro Nas Montanhas da Loucura (além de “slashers” em geral).
Exemplos que já tinham originalmente usado grande parte dos momentos que marcam “Alien”, mas com a grande diferença que somente ali, no dia 25 de maio de 1979, se viu o resultado dessa convergência, que resultou da conjunção de todo esse esforço que começou com o roteirista em sua última chance de emplacar um de seus textos e acabou com Ripley (no que para muitos é uma velada e violenta cena de estupro dentro do “escape pod” trajando sua famosa calcinha branca) sobrevivendo (não derrotando a criatura) a todo esse pesadelo.
Uma combinação única que separa blockbusters, fracassos ou um punhado de filmes na média, das lendas.
Confira o Especial Série Alien | Confira os filmes da coluna 666 Filmes de Terror
“Alien” (EUA, 1979), Escrito por Dan O´Bannon e Ronald Shusett, dirigido por Ridley Scott, com Tom Skerritt, Sigourney Weaver, Veronica CartWright, Harry Dean Staton, John Hurt, Ian Holm e Yaphet Kotto