Uma família que ninguém entende, uma garotinha lidando com a perda de uma pessoa amada, cabeças de galinha, enterros caóticos e as paisagens deslumbrantes do interior de Portugal: essa é a receita base de Alma Viva, longa de estreia da diretora e roteirista Cristèle Alves Meira.
Filmado em uma pequena cidade do norte de Portugal e estrelado pela própria filha de Meira, a garota de 11 anos Lua Michel, o longa foi escolhido para ser o representante de seu país no Oscar 2023. Mesmo singelo, Alma Viva sabe bem o que quer dizer sobre mulheres “estranhas” e as crenças retrógradas de lugares como aquela cidadezinha, que enxerga Salomé (Lua Michel), sua avó e outras parentes como bruxas.
Salomé mora na França com os pais, emigrantes portugueses, e passa as férias de verão em Portugal na casa da avó, ao lado também do resto da família. Em seu longa-metragem de estreia, Meira escolhe dar os papéis a não-atores, que de forma geral se saem bem na missão; o destaque é mesmo para Lua Michel, a protagonista que aparece em praticamente todas as cenas e que se estabelece como o coração e a razão de Alma Viva.
Depois de um mal súbito (que rende uma suspeita de envenenamento, ou melhor, de feitiçaria), a matriarca da família falece. Salomé foi a última pessoa a ver a avó viva, a única pessoa que sabe que ela estava vomitando na noite antes de morrer — “esquece isso, ela morreu de velhice, o coração parou”, parecem querer dizer seus familiares. Em meio ao luto pela perda da avó, a garotinha acaba se tornando a pessoa mais prática e sensata quando comparada à histeria, confusão e caos da família — e ainda tem que lidar com acontecimentos que parecem indicar que a alma da avó permanece por ali.
Logo em sua primeira cena, Alma Viva estabelece um eficaz ar de mistério sobrenatural sem precisar mostrar nada — esse ar é leve, onipresente, fazendo com que compreendamos tanto o receio dos demais moradores da região quanto certas decisões peculiares da família, como forçar uma pessoa a comer uma cabeça de galinha (!) para se livrar de um certo mal.
Construindo o ritmo e a atmosfera da obra com eficácia, Meira nos envolve no mundo de Alma Viva, daquelas pessoas e daquela cidadezinha envolvida pelas amplas e deslumbrantes paisagens do interior de Portugal. Assim, é com alívio que percebemos que uma cerimônia que passa quase o filme inteiro “tentando” acontecer, finalmente toma lugar de forma tranquila, mesmo cercada de mais caos (agora espalhado pela cidade inteira).
A visão limitada das pessoas a que a cineasta nos apresenta faz com que elas enxerguem mulheres solteiras e/ou independentes como bruxas, envoltas de mistério, medo e superstição. Há, sim, algo de peculiar na família de Salomé — mas isso não é verdade de todas as famílias?
Quieto e contido, Alma Viva deve acabar “sumindo” diante de outros títulos concorrentes ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, mas certamente vale ser conferido; de qualquer forma, ter seu primeiro filme selecionado para representar seu país de origem não é para qualquer um, e que bom que isso aconteceu com um filme tão competente conduzido por uma diretora estreante e seu longa que fala tão diretamente sobre mulheres e o que a sociedade impõe sobre elas.
“Alma Viva” (Por/Fra/Bel, 2022); escrito por Cristèle Alves Meira e Laurent Lunetta; dirigido por Cristèle Alves Meira; com Lua Michel, Ana Padrão, Jacqueline Corado, Catherine Salée, Duarte Pina e Ester Catalão.
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