Ao longo de sua carreira, o diretor e roteirista Sean Baker estabeleceu algumas características constantes — e marcantes: um olhar que enxerga a beleza do cotidiano sem romantizações, que desmistifica o mundo habitado por pessoas às margens da sociedade, uma câmera que se aprofunda sem receios nas frustrações, medos e anseios mais profundos de seus personagens. Tudo isso está presente de forma intensa e memorável em Anora, o novo longa do cineasta.
Anora — ou Ani, como ela prefere ser chamada (Mikey Madison) — é uma jovem que trabalha como dançarina erótica e prostituta em uma boate de Nova York. Morando na periferia da cidade com a irmã (a mãe, que mora em Miami com o namorado, não parece lembrar muito de sua existência), Ani trabalha noite adentro de segunda a segunda. Até que, graças à sua habilidade de desenrolar algumas frases em russo, Ani conhece um carismático, animado e milionário herdeiro Ivan (Mark Eydelshteyn) que passa seus dias em Nova York entre festas, drogas e a mansão dos pais, que permanecem na Rússia.
As horas que Ani recebe para passar com ele se tornam uma semana, durante a qual ele paga para a garota ser sua “namorada”. Até que, durante uma viagem a Las Vegas em que os dois percebem que estão apegados um ao outro — e também que o tempo que têm juntos está acabando, já que o garoto precisa voltar à Rússia —, um jeito de resolver surge como uma luz no fim do túnel e eles resolvem se casar, dando a ambos o que eles mais querem: permanecer juntos, enquanto ele ainda poderá continuar nos Estados Unidos e Ani continuará tendo acesso aos luxos que a vida com Ivan proporciona.
E um dos trunfos do olhar de Baker é que ele entende perfeitamente que esses luxos estão longe de ser apenas as joias, festas, drogas e roupas caras que Ivan compra sem hesitação para Ani. A garota se encanta principalmente pela leveza e pela liberdade que a vida ao lado de Ivan lhe garante — de repente, ela se vê livre da necessidade de vender seu corpo, de se sujeitar a um chefe abusivo, de ter que trabalhar tanto para ter acesso a tão pouco. Ao lado de Ivan, Ani pode ser apenas uma garota divertida, despreocupada e apaixonada, curtindo a vida ao lado de um cara que a idolatra e que soluciona qualquer mínimo impulso ou desejo assim que ele surge.
Mas, por mais que os longas de Baker sejam repletos de momentos um tanto surrealistas e bizarramente divertidos — como o capanga da família de Ivan, Toros (Karren Karagulian), em um batizado —, o conto de fadas em que Ani se encontra é fantasioso demais para ser a realidade; no realismo pelo qual o cineasta preza, a verdade é que encontros supostamente mágicos como o dos dois jovens pode acontecer, mas a realidade logo bate à porta. E a realidade é a leveza e liberdade de Ivan, tão encantadoras à primeira vista, no dia a dia se mostram apenas as características de um garoto mimado, irresponsável e inconsequente.
Afinal, não é exatamente a proibição imposta pelos pais dele, que se enfurecem quando descobrem que o herdeiro se casou com uma garota de programa, que estoura a bolha de fantasia dos dois; é a reação dele a isso — que de fato acaba com a fantasia muito antes de os milionários russos sequer intervirem.
Diante de tudo isso, Mikey Madison constrói Anora como uma típica jovem mulher, que ri dos clientes ao lado das amigas e se encanta por jóias e casacos estonteante, mas que aos poucos revela toda a força de quem sempre teve que lutar para sobreviver, e a vulnerabilidade de quem nunca realmente teve espaço para se mostrar frágil ou insegura. Se destacam também a trupe de capangas de Ivan — Yura Borisov, Karren Karagulian e Vache Tovmasyan —, cujas personalidades distintas e bem construídas garantem momentos divertidos e um segundo ato que mantém um ritmo frenético até um final devastador.
Exibindo a sensibilidade e a crueza que tão rapidamente se tornaram marcas registradas de sua obra, Sean Baker constrói em Anora mais um longa marcante e uma protagonista memorável.
“Anora” (USA, 2024); escrito e dirigido por Sean Baker; com Mikey Madison, Mark Eydelshteyn, Yura Borisov, Karren Karagulian, Vache Tovmasyan, Lindsey Normington e Vincent Radwinsky.