Apenas Mortais pode ser visto por diversos ângulos, mas em termos gerais, mais amplos, é uma “ficção-denúncia” sobre o envelhecimento da sociedade chinesa e o aumento de doenças degenerativas entre a população. Com isso, os problemas decorrentes do sistema de saúde se tornam mais presentes, muito embora o longa fique em cima do muro em questões governamentais e esteja mais disposto a explorar o drama familiar, deixando questões maiores em segundo plano.
Em uma sequência na rua vemos dezenas de idosos conversando e se exercitando nos parques temáticos. Apenas idosos. O exagero da cena reflete na presença onisciente de Xian Tian, a protagonista do filme, que não é idosa, mas que sofre através da doença do pai e dos cada vez mais presentes sacrifícios da mãe.
Apesar de estar vivendo um momento de transição na vida amorosa e profissional, Xian não consegue ter uma vida independente dos dois, principalmente sabendo que nesses próximos anos eles estarão cada vez mais frágeis. Apenas Mortais é então um misto entre os últimos momentos em que ela conviveu com eles, suas memórias e a reflexão que isso gera quando pensamos na imensa quantidade de velhinhos desamparados na China.
Quando o filme começa seu pai já está com Alzheimer em uma fase avançada e sua mãe insiste em manter seu orgulho de cuidá-lo sem quase qualquer ajuda das filhas, apesar de sugerir a ausência de uma delas como uma carência pior do que a financeira. A mãe de Xian Tian é uma personagem obviamente forte com uma atriz que pelo olhar sabemos ter sido escolhida a dedo, mas sem um passado para entendê-la, a dinâmica acaba sendo confusa, o que é uma pena.
E isso vai mais longe, sua relutância em pedir ajuda, por exemplo, gera momentos constrangedores e incompreensíveis em família, como em um momento em que seu marido precisa ser levado até o banheiro porque ele urinou na cama e ela impede todos os presentes de ajudá-la, mesmo fisicamente mais jovens e mais capazes do que ela.
E cenas como essa parecem justificar o drama pelo drama, pois estão dissociadas de uma narrativa em que um evento leva o outro. Não existe muita personalidade nos personagens do filme. Eles são meramente representantes de uma realidade maior: as memórias de uma jovem a respeito da vulnerabilidade dos pais, e a imaginação de quantos pais e filhos sofrem o mesmo drama.
Apenas Mortais demonstra ainda uma China empenhada em produzir filmes “de arte” com qualidade internacional, mas mesmo que seus idealizadores alcancem o virtuosismo técnico, falta uma alma ao projeto. Esta é mais uma história sobre a efemeridade da vida envolvendo a tragédia familiar de um dos membros tendo que passar as desgastantes fases de uma doença que os consomem aos poucos. É triste e potente em alguns momentos, mas no conjunto da obra não conseguimos sentir nada.
Parte do que funciona está nas mãos das decisões narrativas de seu diretor estreante Liu Ze, que nos envolve com planos-sequência em longas cenas que capturam tanto o imediatismo quanto o nosso fôlego. É de um realismo angustiante em alguns momentos mais fortes, chegando até a ser difícil de olhar para a tela, pois são cenas pesadas e impactantes, e temos a visão direta da ação. Porém, visto em retrospecto, essas cenas não se unem em uma forte convicção de quem tem algo a dizer.
Para citar um exemplo do mesmo tema para comparação, em Amor, de 2012, de Michael Haneke, outro filme que lida com a perda da pessoa querida, que se vai aos poucos e gerando imensa dor, essa dor sentida pelo personagem lúcido vem ao espectador como marteladas constantes e ritmadas no mesmo órgão (o coração). Em Apenas Mortais essas mesmas marteladas soam aleatórias, sem foco e com intensidades variadas.
Não há ninguém orquestrando esses golpes emocionais dados no espectador. No final sobram os hematomas, mas ainda estamos vivos, inteiros, e logo nos esqueceremos desse filme. Haneke, por comparação, é inesquecível.
Liu Ze até cria alguns momentos memoráveis e emocionantes no filme, mas o são assim pela própria estética da cena. Como quando dois ex-colegas e namorados flertam na escola onde estudaram, e as memórias do passado se misturam com o flerte do presente. É poderoso, um dos melhores momentos do longa e está completamente disassociado de sua história principal, ou pelo menos não sabemos como uma coisa leva a outra se não raciocinarmos em cima. Perdermos no processo essa conexão emocional tão importante para uma jornada que lida com perdas tão íntimas.
O raciocínio no cinema funciona mais por intuição do que pela prática analítica tradicional de que dois mais dois são igual a quatro. Apenas misturar temas que possuem em comum a passagem do tempo não tornará esse fluxo contínuo de imagens em algo maior do que suas partes.
Apenas Mortais não consegue fugir do lugar-comum de filmes do gênero, embora tenha a técnica ao seu favor. A fotografia é linda, a edição impecável. Mas a alma, esse grude intangível que une uma obra de arte em um todo maior que suas partes, isso falta.
“Being Mortal” (China, 2020); escrito e dirigido por Liu Ze; com Li Kunmian, Shi Xiaofei, Tang Xiaoran e Zhang Hongjing.
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