Não é à toa que Steven Spielberg, nos últimos tempos, pareça engessado quando tenta ser mais sério e maduro, já que é só ele colocar as mãos em um projeto como As Aventuras de Tintim que o resultado é inspirador e digno de seus melhores momentos por trás das câmeras. Principalmente quando isso reflete tanto sua paixão por um personagem.
Adquirido lá em 1983 pelo diretor, os direitos de filmagem da adaptação dos quadrinhos do belga Hergé já quase ganharam vida mais de um par de vezes, mas, felizmente para todos, só agora Spielberg se sentiu à vontade com tal coisa, já que seu (recém) companheiro de empreitada, Peter Jackson, mostrou então o que eles poderiam fazer com o jovem jornalista em suas aventuras épicas em termos de animação.
As Aventuras de Tintim é então feito todo através da chamada “motion-capture”, assim como Robert Zemeckis fez em seu Expresso Polar e James Cameron criou seus protagonistas azuis em Avatar (e Jackson com o Gollum), o que dá a Spielberg, mesmo diante de atores reais posteriormente digitalizados, uma liberdade técnica sem igual. E que ele faz questão de aproveitar até o último frame (ou pixel).
Para Spielberg, As Aventuras de Tintim, sua primeira animação, representa a falta de limites e a possibilidade de fazer com que até o menor dos planos possa se transformar em um espetáculo visual (certas fusões entre planos, flashbacks e locais diferentes são um show de ritmo à parte nessa montagem), onde sua câmera não precisa mais ser impedida de ir onde quiser, nem suas sequências de ação precisam obedecer qualquer regra da física (muito menos serem orquestradas por ninguém manipulando a câmera em si). Para Spielberg, em As Aventuras de Tintim o céu é aquele mesmo limite que a Pixar vem tratando de atingir a mais de uma década.
E assim como a empresa da Disney, Spielberg vai em busca daquilo que o cinema tradicional vem mais perdendo: o prazer de se divertir. Desde os simpáticos créditos iniciais (com John Willians voltando à boa forma depois da descontrolada trilha de Cavalo de Guerra) até a impressionante (talvez aqui o “I” pudesse até ser maiúsculo) sequência sem cortes que atravessa uma cidade no Marrocos, As Aventuras de Tintim é sinônimo de (como o próprio título diz) aventura. Uma despreocupada, divertida e empolgante aventura como é pouco visto no cinema (e que Spielberg se especializou em fazer e produzir nos anos 80).
Nela o espectador é apresentado a Tintim (Jamie Bell), um jovem jornalista investigativo que dá de cara com a miniatura de um navio em uma feira de tranqueiras usadas e acaba se metendo em uma aventura através do mundo para encontrar um tesouro escondido por um antigo navegador, antes que o vilão Sakharine (Daniel Craig) o faça. Nesse caminho, acompanhado de seu cãozinho Milu (ou Milou, já que Snowie é pura invenção de americano, assim como o nome dos detetives Dupon e Dupon que se transformam em Thomson e Thompson), acabam encontrando um alcoolizado Capitão Hadock (Andy Serkis, vulgo Gollum), herdeiro desse tesouro e que acaba se tornando parceiro do herói.
E para os fãs, como se essa sinopse já não bastasse, As Aventuras de Tintim, praticamente, não é nem uma adaptação, mas sim um modo apaixonante de dar vida àqueles personagens dos quadrinhos, como se Spielberg e a Weta (empresa de Jackson responsável pelas animações) procurassem extrapolar o limite daquelas páginas (notem no modo engenhoso como Spielberg coloca passarinhos voando ao redor da cabeça de um personagem quando esse fica desorientado), mas sem chegar perto da tediosa realidade, o que lhes permite ir até onde suas imaginações permitirem.
Talvez uma homenagem não só ao próprio Hergé, que declarou antes de sua morte que adoraria ver seu personagem adaptado para o cinema pelas mãos de Spielberg, e em As Aventuras de Tintim ainda lhe é dado a oportunidade (virtual) de mostrar ao espectador a verdadeira face de seu herói (na sequência inicial, na feira, onde Tintim é retratado, pelo próprio Hergé, em seus traços característicos), mas a todos seus fãs pelo mundo que vêem sendo fisgados por essas aventuras desde sua primeira edição. E talvez mais ainda, um modo de dizer ao cinema atual que ainda existem oportunidades de se contar uma história simples e deliciosa (onde até um arroto consegue ser engraçado e divertido) sem se tornar boba e descartável.
E para costurar isso, Spielberg e Jackson apostam suas fichas em um trio inglês inspirado e que vem fazendo sucesso por onde passa, já que o roteiro de As Aventuras de Tintim ficou à cargo de Steven Moffat (atual escritor do sucesso da TV Inglesa Sherlock, além de ter participado da revitalização de outra série britânica, Doctor Who), Edgar Wright (de Todo Mundo Quase-Morto e Scott Pilgrim) e o novato Joe Cornish (que emplacou o divertido Ataque ao Prédio). É desses três a responsabilidade de estruturar tão bem essa história, que consegue captar perfeitamente o sentimento inocente e aventuresco dos originais e fazer com que funcione tão perfeitamente quanto o faz.
As Aventuras de Tintim é então um exemplo de como fazer um filme sobreviver a uma trama que facilmente poderia cair na armadilha de se tornar inocente e óbvia demais ou simplesmente boba, mas que, nesse caso, ganha seu espectador pelo ritmo e pelo modo como toda ela vai se estruturando de modo consciente e seguro. Que não corre logo no começo para contar para todos no cinema como tudo pode acabar, mas que prefere lapidar seus personagens, brincar com um punhado de referências e deixar o espectador se divertir enquanto aprecia o visual impressionante. Que não precisa correr para chegar a lugar nenhum, mas sim aproveitar cada momento que conseguir ter.
Spielberg então, diante dessa possibilidade, não desperdiça nada, gasta tempo suficiente com um astuto ladrão de carteiras em uma sub-trama que cai de presente no colo dos dois detetives da Scotland Yards (tremendamente divertidos e interpretados pela dupla Simon Pegg e Nick Frost, de Todo Mundo Quase Morto) e ainda parece ter uma atenção especial (obviamente) diante do cãozinho Milu, que aqui ganha status de um divertido astro de cinema mudo. Como se permitisse a Spielberg fazer o que quisesse com ele a fim de criar esse delicioso exagero emocional que o torna, talvez assim como nos quadrinhos, o personagem mais apaixonante e divertido de toda essa mítica criada por Hergé e que chega aos cinemas na melhor embalagem possível.
Uma aventura emocionante e que se esbalda no olhar empolgante de Tintim sempre a procura (já pedindo perdão pela rudandância, mas ela é mais que necessária) de mais aventura, de mais emoção. Um olhar apaixonado que conquistará o público no cinema e o fará esperar afoito pelo próximo filme dessa trilogia (esse dirigido pelo próprio Jackson), que promete, e provavelmente deva, conquistar o cinema e o público atual assim como vem fazendo com todas as gerações que tiveram contato com o jovem jornalista, seu cãozinho, seu amigo capitão e os dois atrapalhados detetives idênticos.
The Adventures of TinTin (EUA/NZ, 2011) escrito por Steven Moffat, Edgar Wright e Joe Cornish, dirigido por Steven Spielberg, com Jamie Bell, Andy Serkis, Daniel Craig, Nick Frost e Simon Pegg.