Sou São Bernadense, nascido e crescido no Grande ABC. Quando me conheci por gente lembro de meu chefe em meu primeiro emprego de office-boy me apresentando ao Garotos Podres, uma banda local de punk rock que tinha um hit de sucesso maravilhoso chamado “Papai Noel Velho Batuta”. Esse foi o início das minhas leituras sobre anarquismo e pensamentos anti-capitalistas que consumiram alguns anos da minha adolescência.
Isso foi há muito tempo, mas foi com um certo saudosismo que assisti ao As Faces de Mao, que apresenta essa visão ainda defendida pelo seu vocalista e mantenedor da formação atual da banda.
O filme começa já mostrando que Mao não é apenas o vocalista de uma banda underground “contra-cultural”. De fato nos anos 80 lá estava ele, no centro do Garotos Podres, 16 anos nas costas, estudando em São Bernardo do Campo, núcleo das greves do ABC. O período pós-anistia da intervenção militar foi efervescente na política e na arte brasileiras, e mais ainda nesses lugares centrais ao lado de Mao: no berço do Sindicato de Metalúrgicos, do Partido dos Trabalhadores e de Luis Inácio Lula da Silva. Porém, dez anos depois Mao seguiu outro rumo, se formando em história e virando professor, outra atividade que lhe dá prazer. Mas continua cantando “mal e porcamente” (nunca “parcamente”, como no ditado, já que Mao nunca parou de cantar) e isso é digno do movimento punk rock até hoje. Talvez mais até do que as crias do milênio.
As Faces de Mao é uma retrospectiva que vai dessa época até 2020, o ano passado, ano de uma nova gravação com uma nova formação e músicas velhas. A ideia é dar uma repaginada atual no que Mao e sua turma consideram um governo fascista. Sendo assim as músicas são tão atuais quanto as da reabertura dos anos 80. Até porque não é criticável essa paixão de defender o bem, a verdade e a justiça sob os olhos da juventude, mesmo que dessa juventude alguns representantes, como o sempre ativo Mao, já carregue quase 60 anos nas costas. Nesse sentido, ao longo das décadas ele continuou sendo esse “garoto podre”, embora o significado de “ser contra o sistema” mudou. E muito.
Hoje todo esse movimento está praticamente alinhado não apenas com o sistema, mas cooptados pelas maiores corporações do planeta, tornando tudo isso tão irônico e contraditório quanto o plot inicial da série televisiva Mr. Robot.
O documentário faz essa junção de momentos em que Mao canta e fala através de imagens atuais e de arquivos. O título As Faces de Mao, assinado pelos dois cineastas Dellani Lima e do estreante em longas Lucas Barbi, acaba sendo ilusório, pois há apenas uma face: a do artista revolucionário.
Pode ser cantado como vocalista de uma banda ou falado como um articulador em história e militância, mas no fundo nós sabemos que é a mesma, como o próprio afirma: “Garotos Podres é dar ritmo às falas de protesto”. Acaba sendo um símbolo da piada (sim, isso é uma piada bem comum na vida real) sobre os centros acadêmicos e seus grupos de estudantes defendendo a pluralidade de ideias, quando o plural é igual a apenas uma única visão. E com a vinda da internet e dos celulares que podem gravar vídeos a qualquer momento ficou cada vez mais claro o quanto qualquer lado ideológico da moeda é tão intolerante quanto.
Mas devaneio. O doc é bacana, sim. Tem sérios problemas com a captação de som nos recortes dos shows e das músicas que ouvimos Mao, mas dane-se. Isso é punk, como ele mesmo diz na entrevista. Quando o perfeito não existe dá-se um jeito. Seu primeiro e segundo microfones foram improvisados, em um dos muitos divertidos causos que ele nos conta. Até nós, do CinemAqui, com tantos afazeres no dia-a-dia, damos nosso jeito de continuar escrevendo sobre cinema, fincando os pés na filosofia punk.
Isso me empolga e me faz assistir e escrever sobre esses filmes da Mostra. A pluralidade de ideias só começa a fazer sentido quando podemos expressar o quanto ser revolucionário se tornou continuar sendo um eterno adolescente utópico.
Se a utopia está na moda, bora colocar Garotos Podres pra tocar mais uma vez.
“As faces do Mao” (Bra, 2021), escrito e dirigido por Lucas Barbi e Dellani Lima