Este segundo longa da cineasta Elza Cataldo (Vinho de Rosas) é antes de tudo um trabalho documental de uma época pouco vista na cinematografia brasileira. Estamos falando dos longínquos anos 1580 e seus esparsos imigrantes, a maioria está lá por sentença, ainda que alguns vendidos pela chance do novo mundo.
O filme recria este ambiente e os ânimos dos locais, começando pelas pessoas menos satisfeitas por estarem lá: as mulheres de Portugal. Há três delas, irmãs. As duas mais velhas já vieram encomendadas para formar família. A mais nova não: ela tem o pé defeituoso e nenhuma serventia. Então ela fica na igreja com um padre que se sente guardião da moral entre os poucos habitantes de Vila Morena e os nativos em volta. Não demora muito para ela começar a desenhar sua arte e ter uma paixonite por um indiozinho de fala mansa.
O trabalho histórico no filme é impressionante, ainda mais por se tratar de uma produção nacional. Não estamos acostumados a épicos que resgatam o início de nossa brasilidade, e todo o afinco e detalhes em narrar esta passagem aumenta a imersão.
As atuações são precisas, beneficiadas por diálogos que aumentam nossa compreensão dos valores daquela sociedade. Existe um quê teatral que ofusca o realismo que é tão curioso quanto os efeitos de computação gráfica que surgem, na maioria gratuitos, exceto pela morte de uma criança.
Outro detalhe que soa condescendente com o espectador contemporâneo são as cenas de violência cotidiana daquela época, que no filme ocorrem fora de quadro. É de bom tom, mas suaviza a brutalidade, se aproximando de uma novela da vida privada e se afastando do seu potencial de provocar-nos e até virar um filme lembrado por mais tempo do que o tempo em foi idealizado, por mais de uma década.
Por falar nisso, suas filmagens terminaram assim que os casos de COVID começaram no Brasil, e todos os meses de preparo da pré-produção se pagaram, pois o trabalho após filmado ocorreu remotamente, quando já havia uma alma construída, idealizada com muito esmero por Cataldo.
Apesar da longa duração e o ritmo prosaico, o filme passa rápido, mas não o suficiente para seu terceiro ato, que soa arrastado não pelo conteúdo, mas por não esperarmos por todo o episódio envolvendo a chegada da Santa Inquisição e o julgamento dos moradores da Vila. Essa parte também é um primor de detalhes documentais e quase não deixa escapar a visão parcial de lados e a defesa ferrenha de opinião que estamos acostumados a perceber em produções de viés social (ainda que esteja lá). Só que este longo processo que transforma amigos e conhecidos em traidores uns dos outros para salvarem sua pele não estava na expectativa do espectador. Por outro lado, lembra um pouco as farpas trocadas na pandemia, que dividiu por completo as pessoas.
Se eu fosse você eu assistiria este filme no cinema. É muito difícil na vida moderna do sofá de casa ou dos gadgets na palma do mão escapar do ritmo alucinante de luzes piscando. Este trabalho histórico merece uma imersão que não está disponível em streaming. Exceto, talvez, em sua revisita.
“As Órfãs da Rainha” (Bra, 2022), escrito por Newton Cannito e Elza Cataldo, dirigido por Elza Cataldo, com Rita Batata, Alexandre Cioletti e Celso Frateschi.
SINOPSE – Durante o século 16 três mulheres são mandadas de Portugal para a colonia do Brasil e precisam sobreviver às violências desse novo lar.