O intimismo e a subjetividade da câmera de Abdellatif Kechiche e a honesta e belíssima performance da jovem Adèle Exarchopoulos constroem, em Azul é a Cor Mais Quente, um retrato impactante e brutalmente sincero da passagem de uma garota à vida adulta, alavancada por um grande amor.
Depois de transar pela primeira vez com um garoto por estar cansada da pressão das amigas, Adèle (Exarchopoulos) se desespera com a sensação de que algo está faltando. O vazio dentro de si é preenchido quando ela beija uma colega de escola e começa a entender melhor a própria sexualidade, despertada por uma troca de olhares na rua com uma garota de cabelos azuis, a estudante de Belas Artes e pintora Emma (Léa Seydoux). Depois de um reencontro em um bar, as duas embarcam em um relacionamento intenso que, com o passar do tempo, torna-se um amor sincero e confortável e, finalmente, desmorona e força Adèle a se reencontrar.
O longa é baseado na graphic novel de Julie Maroh, mas, aqui, o nome original da protagonista, Clémentine, foi substituído pelo nome da atriz que a interpreta, Adèle. Afinal, a garota é uma revelação, e sua performance sustenta a obra e a injeta com toda a sinceridade e crueza que Kechiche quer passar. Assim, os frequentes planos de Adèle (a personagem e a atriz) realizando atividades cotidianas como comer e dormir, os closes que mostram cada mínima mudança em sua expressão, e as manias como ajustar o cabelo ou puxar o cós da calça, ajudam a construir esta fascinante personagem, que acompanhamos em seus momentos mais íntimos.
Que, claro, incluem a tão falada cena de sexo “de dez minutos de duração” (mais para seis minutos). É verdade que a cena poderia, sim, ser mais curta: começando com a intimidade que permeia o resto do longa, com o passar dos minutos fica cada vez mais claro que, por trás da lente, há um homem heterossexual observando duas belas mulheres no que era para ser um momento íntimo. Mesmo assim, a primeira vez de Adèle e Emma é essencial por retratar a protagonista enfim preenchendo o vazio que vinha sentindo dentro de si e para estabelecer a força de seu desejo e amor pela outra. Algo presente também em outros momentos envolvendo sexo do longa, como quando as duas conversam e fazem piadas no quarto de Adèle quando já estão juntas há algum tempo, e no restaurante, quando ignoram o mundo ao redor e novamente perdem-se uma na outra.
O roteiro, assinado pelo diretor e por Ghalia Lacroix, faz um bom trabalho, também, ao não estabelecer Emma como uma exceção à heterossexualidade de Adèle e, assim, criar um filme realmente protagonizado por duas mulheres homossexuais. Afinal, o beijo de sua colega já aproximou Adèle do que ela buscava. Muito acertadamente, não presencíamos nenhum momento de Adèle com o colega de trabalho com quem ela tem um caso além do primeiro beijo dos dois, apesar de acompanharmos todos os momentos importantes da vida da garota. Se ela buscou outra pessoa para fugir da solidão que vinha sentindo, o fato de ela encontrar essa companhia em um homem e não em outra mulher é resultado da dificuldade que Adèle ainda sente de se assumir como lésbica, algo que ela não conta para seus amigos e nem para seus pais.
E se o título original da graphic novel também foi alterado no longa para La Vie d’Adèle, “A Vida de Adèle” – já que o destaque do filme é, não apenas seu relacionamento com Emma, mas seu amadurecimento -, ele foi mantido no título brasileiro. Afinal, não apenas nos cabelos de Emma, o azul encontra-se em todo o filme, nos figurinos e no cenário. Começando a surgir discretamente no vestuário de Adèle e em momentos-chave de seu processo de descobrimento, como o banco em que ela termina com o namorado e no protesto em que ela vai com os colegas, o uso da cor torna Emma o ápice do que Adèle procura. Quando o deslumbramento passa e a relação se torna parte do dia a dia das duas – até, finalmente, acabar -, o azul já havia desaparecido de seus cabelos (mas continua, claro, nos olhos de Seydoux). A cor preenche a última tentativa de Adèle de voltar com Emma, desde as luzes que banham o restaurante até as roupas das duas. E ressurge na praia, onde vemos a protagonista cercada pelo azul instável do mar, quando ela começa a aceitar a perda da amada. O vestido azul que Adèle veste na última sequência, assim, representam o difícil processo pelo qual ela passa e que, lentamente, vence, tornando o encerramento do longa melancólico mas, também, esperançoso. O cuidado dedicado ao trabalho de cores fica evidente também na festa em que Adèle beija seu colega de trabalho, mergulhada no amarelo – a cor oposta ao azul.
Estendendo-se por vários anos da vida de Adèle, a garota que conhecemos como uma estudante no primeiro ano do ensino médio, apaixonada por comida e por livros, se transforma, diante de nossos olhos e ao longo das três horas de projeção, em uma jovem mulher que amadureceu muito ao conhecer e perder seu grande amor (e, claro, ao enfrentar o preconceito e a opressão que a ignorância da humanidade lhe reserva como mulher homossexual). Exarchopoulos, que tinha 18 anos durante as filmagens do longa, interpreta cada fase e cada nuance de Adèle com maestria, e é essencial para a eficiência deste excelente trabalho.
Os dizeres “Capítulos 1 & 2” sob o título mostram que foi ao menos discutida a decisão de dividir Azul é a Cor Mais Quente em dois filmes; decisão esta que, felizmente, não se concretizou. A obra certamente manteria sua eficiência, mas perderia muito de sua força ao separar os acontecimentos pela metade. Cada momento que vemos na tela, cada lágrima de Adèle, cada acontecimento cotidiano, são essenciais para a construção desta poderosa história.
“La Vie d’Adèle“, escrito por Abdellatif Kechiche e Ghalia Lacroix, dirigido por Abdellatif Kechiche, com Adèle Exarchopoulos, Léa Seydoux, Salim Kechiouche, Benjamin Siksou e Mona Walravens.