Lenda ou não, Ryan Gosling decidiu aceitar o papel do principal Ken em Barbie (o filme) depois de ver o próprio boneco de sua filha jogado no jardim ao lado de um limão espremido. Para ele, era o sinal de que ele precisava contar a história daquele personagem. Mas, por mais que ele (Ken) e mais um monte de homens por aí, quisessem que o filme fosse sobre o boneco, ele não é, é sobre a Barbie mesmo (a boneca). Azar deles. Sorte a nossa, dos amantes de cinema que não são malucos (o Gosling não, ele parece ser um cara legal).
Em termos de cinema de Hollywood, o filme se chamar Barbie e ser protagonizado pelo Ken não seria uma surpresa. E o roteiro da diretora Greta Gerwig em parceria com seu marido Noah Baumbach leva muito isso em conta, afinal a adaptação da famosa boneca para os cinemas é sobre a própria Barbie “descobrindo” um “mundo real”, e por aqui, a realidade é aquela do começo do parágrafo. Mas o filme vai muito além disso.
Barbie, na verdade uma das Barbies, mais precisamente aquela que carrega o estereótipo da boneca mais genérica, é vivida por Margot Robbie. Ela vive em “Barbilândia” com mais um montão de outras Barbies, cada uma com suas profissões, roupas etc. Lá também vivem todos os Kens, seu fiel amigo Allan (Michael Cera) e ainda Midge (Emerald Fennel) e mais outras bonecas e bonecos que acabaram saindo de linha.
Nesse idílico mundo, Barbie (a protagonista do filme) de uma hora para outra acaba tendo que lidar com pensamentos e vontades que a arrancam desse estereótipo que ela deveria obedecer, o que leva ela a crer que está com defeito. O começo de uma aventura que a leva diretamente para o “Mundo Real” em busca de sua “dona”.
O melhor de tudo isso é que Barbie (o filme), mesmo parecendo seguir por esse caminho, rapidamente surpreenderá absolutamente todos espectadoras e, mais ainda, espectadores. Mas também ninguém irá ser enganado, já que as intenções ácidas da cineasta estão lá no filme, pintadas em tons de cor-de-rosa. O resultado é divertido, ágil, inteligente e imperdível.
Mais ainda, talvez Barbie devesse ser obrigatório para meninos e meninas. Elas, para entenderem o quanto deveriam ser empoderadas e donas de seus destinos. Eles… bom, quem não der risada dos estereótipos e brincadeiras, vai se ofender, mas aí azar deles.
Gerwig tem um objetivo e não permite que absolutamente nada a impeça disso. É lógico que tem em mãos uma boneca que representa uma série de preceitos e preconceitos que esmagaram as mulheres durante décadas, por isso mesmo ela faz questão de quebrar essas questões com um humor ácido e que não poupará ninguém. Mas é lógico também que o vilão real do filme é o patriarcado, então é impossível pegar leve com o “mundo dos homens”. E isso é, de longe, a estrela do filme.
Os discursos empoderados e empoderadores de várias personagens sempre são poderosos e bem encaixados no filme, mas em certos momentos parecem muito mais uma (bem-vinda) catarse feminina do que algo para compor o filme. A diversão dele está nos homens e na capacidade ilimitada deles serem ridículos e carregados por um movimento de rebanho que beira a acefalia. O que é hilário e tão cheio de pequenas e grande referências que funciona em sua totalidade.
Tudo isso dentro de uma estrutura que não parará de surpreender todos dentro do cinema. E mesmo diante de algumas soluções aparentemente simples e mais inocentes, o roteiro de Gerwig e seu marido sempre encaixa algum tipo de detalhe que sai do óbvio e arrancará risos sempre seguidos de reflexões e pensamentos que colocarão aquelas referências diretamente dentro do mundo fora do cinema (quase uma metalinguagem).
Se no começo do filme a referência a 2001 – Uma Odisseia no Espaço é clara, o resto do filme não segue um tom de sátira, mas sim do ridículo, da brincadeira com o exagero e da certeza que o espectador vai entrar no clima e entender onde Gerwig quer chegar: na crítica séria, mas sem ser pedante. Tudo no campo de uma provocação saudável e que eleva o filme para lugares impensados.
É claro que isso só é possível graças a uma criação visual pertinente e um elenco que entra na brincadeira. A direção de arte é magnética e Gerwig faz de tudo para valorizar esse visual de modo preciso e incrível. Tanto na ideia de construir esse mundo fora de proporção, quanto pela opção acertada (e perfeita) de criar tudo através de efeitos práticos, o que dá uma sensação real de lúdico e dentro de uma brincadeira. E expanda isso para os guarda-roupas e construções visuais dos personagens, todos absolutamente dentro desse imaginário coletivo do mundo da Barbie. Além de, é claro, uma enxurrada de easter-eggs e brincadeiras que deixarão qualquer fã da boneca se divertir demais.
Já o elenco, além de Margot Robbie, mais uma vez entender absolutamente todas necessidades de sua personagem e construir alguém crível dentro das expectativas e não simplesmente um deboche, é curioso prestar atenção do elenco de apoio e no quanto ele é formado por uma dezena de nomes de atores e atrizes que estão caminhando para um momento de estrelato em suas carreiras. Em pouco tempo o grande público estará com o nome de gente como Issa Rae, Alexandra Shipp, Ritu Arya, Emerald Fennel, Simu Liu, Kingsley Ben-Adir e muito outros, na ponta da língua. E todas serão lembrados por estarem em Barbie.
É lógico também que nomes conhecidos estão no elenco, como America Ferrera, Michael Cera e Will Ferrel, mas o destaque, ao lado de Robbie, é mesmo Ryan Gosling, que sabe não se levar a sério como poucos em Hollywood. Assim como ela, ambos sabem que para fugirem do estereótipo de galãs, precisam quebrar as expectativas, e ele vem fazendo isso filme a filme.
Todas essas pessoas, assim como Gerwig, toda produção de design e o marido da diretora, conseguem entender a linha que o filme quer seguir. Seu humor e sua acidez enquanto usam esse subterfúgio para discutirem um assunto importante e que ganha um poder enorme diante das risadas. É impossível sair de Barbie sem pensar um pouco em todos esses assuntos. É mais impossível ainda não entender porque o Ken jogado do lado do limão espremido não é fácil de entender. Afinal ele é apenas um Ken. Não é?