17 DE JULHO, SEGUNDA-FEIRA
Faltam duas semanas para o começo das minhas férias. Férias não, descanso remunerado, como manda o manual de comunicação do mundo corporativo pejotizado. No começo do expediente, faço a minha ronda de notícias e leio um destaque para as estreias da semana: Barbie e Oppenheimer. Penso em ver o novo do Christopher Nolan, mas tenho receio. Três horas de duração. E se me dá vontade de ir ao banheiro no meio do caminho? E se o Nolan colocar uma meia hora desnecessária outra vez? E se eu estiver cansado demais e dormir na poltrona? Não ligo muito para o outro filme, meu interesse por live action é perto de zero. Vejo previsões sobre uma “onda rosa” nas sessões. Penso numa camisa rosa comprada há quase dez anos, recém-rebaixada da categoria “roupas de ficar em casa” para “roupas de dormir”, depois de anos no grupo “roupas de sair”. Em poucos minutos, entro na reunião diária e lembro do concurso público no próximo domingo. Anoto na folha de quinta-feira da agenda física, porque não estou nem aí para o Google Agenda: comprar um ingresso para o Oppenheimer. Qualquer filme chato ou cansativo ou demorado ou tudo isso é mais divertido que uma reunião antes das dez da manhã.
18 DE JULHO, TERÇA-FEIRA
“Barbenheimer”. Tento achar engraçado o trocadilho porque sou viciado em trocadilhos. Quando percebo o Twitter bombardeado por memes, fotos e vídeos sobre assistir às duas estreias, o cansaço faz do meu riso um natimorto. Se a publicidade é o túmulo do humor, as redes sociais enterram conversas razoáveis sobre assuntos importantes ou banais. Eles ressuscitam e são assassinados nas horas seguintes, entre discussões vazias por curtidas e resumos porcos de temas complexos em pouquíssimos caracteres, escritos e lidos por gente com alergia a interpretação de texto. E segue o jogo, e toca o barco, enquanto o dono do videogame chega aos dez dígitos na conta. O Instagram também me bombardeou com imagens supostamente engraçadas sobre o Barbie, nem sempre com o copia e cola de postagens mais ou menos populares do Twitter. Humildemente, quero mais é que se foda. Não ligo para as trends, como dizem publicitários tarados por palavras em inglês. Tão cansativo quanto passar o dia inteiro nessas redes é reclamar do que se passa nelas. Quando os memes são pequenas bobagens cotidianas e não a desinformação capaz de eleger o maior dos idiotas, é só sair um pouco desse hospício virtual.
19 DE JULHO, QUARTA-FEIRA
Que dia corrido! Cheio de coisas para fazer, mesmo de folga. Coisas profissionais para fazer, é bom ressaltar. A folga foi só em um dos três trabalhos. Quem consegue pagar as contas e não passar fome com um só emprego pode se considerar privilegiado. Quem tem emprego pode se considerar privilegiado, convenhamos.
20 DE JULHO, QUINTA-FEIRA
Nas primeiras horas da manhã, enquanto não começa a primeira das reuniões do dia, compro o meu ingresso para ver Oppenheimer no sábado de tarde. Sempre é bom esvaziar a cabeça na véspera de uma prova importante. Não que me pareça um filme tão oco a ponto de dar folga para o meu cérebro, longe disso. Um monte de gente falando do Barbie e um monte de gente incomodada porque um monte de gente está falando do Barbie. Não perder tempo com debates vazios é uma das poucas vantagens de ter muita coisa para fazer durante o dia. Já vejo textos problematizando o filme da boneca de plástico. Como não tenho amor próprio, leio uma dessas pérolas. Como se descobrisse a roda, o autor informa infelizes leitores que a estreia do dia não é nenhuma revolução feminista. Compartilho o link com o Vinícius me sentindo o mensageiro de um esquema de pirâmide. Quando ele fica bravo por eu ter enviado o texto supostamente politizado de quem nem viu o filme recém-estreado, lembro aquela péssima piada: “Ter ISTs é igual a pegar uma nota falsa: no começo a gente se assusta, depois tenta passar para frente”. Horrível, mas segui essa lógica enviando a opinião vazia como humor duvidoso entre amigos.
21 DE JULHO, SEXTA-FEIRA
Sempre fico impressionado com gente mais burra, mais excêntrica ou mais feia que eu. Me encanto como se olhasse a Torre Eiffel de perto, como se testemunhasse um fenômeno raro da natureza. Tenho essa sensação ao clicar num vídeo com dois supostos críticos de cinema, indignados com Barbie. “É um filme claramente anti-homem e feminista”, dizem os infelizes em tom de denúncia, não sem antes falar mal da epidemia rosa nos cinemas, enquanto vestem roupas estampadas com fotos de super-heróis. São homens supostamente formados, marmanjos barbados e revoltados porque um filme expõe fragilidades masculinas. São caras esquisitíssimos, com a cara de pau de subestimar a beleza da Margot Robbie. Que autoestima da porra! Nos últimos anos, essa gente escrota perdeu a vergonha de passar vergonha. Me sinto na obrigação moral de comprar um ingresso para ver Barbie. Escolho o domingo à tardinha, bem depois do concurso e poucas horas antes da próxima reunião matinal. Vejo os nomes de Greta Gerwig e Noah Baumbach na ficha técnica e me culpo por não ter percebido antes que o tal filme vai além de uma live action vazia. Vejo gente crítica a tanto marketing para um filme e me pergunto quem sou eu?, onde estou?, que ano é hoje?, onde essa galera estava em cada estreia da Marvel ou ação supostamente divertida de um streaming qualquer para promover suas séries? Deixo para lá, hoje é dia de ver uma peça de teatro e depois tomar uma cerveja com a galera num barzinho. Comento essas amenidades com a Luane e ela acha esquisito. “Logo você comprando ingresso para ver Barbie?”, me pergunta. “Logo eu, mas como assim logo eu?”, lhe pergunto. “Um cara que vai ao teatro, que lê tanto, que escreve, sabe…”, me responde. “Intelectual também vai à praia”, lhe respondo. Ando pouco mais de um quilômetro até o ponto final do ônibus que me leva ao Sesc. Nesse mesmo lugar, há quase 20 anos, eu carregava uma marmita e uns cadernos na mochila entre a escola e o Senai, porque já achava que não bastaria o Ensino Médio para me livrar de algum trabalho braçal, que fatalmente me faria passar fome pela minha nota máxima na arte de ser desajeitado. No ponto, vazio e decadente, fico impressionado com um fio meio frouxo entre um poste e outro. Um senhor de sessenta e poucos me confirma que é ainda ali o ponto final. O ônibus chega e para, faltam dez minutos para o começo da próxima viagem e vou ter o privilégio inútil de ser o primeiro a subir e escolher o melhor lugar. Vejo a mulher um pouco mais velha que eu se aproximar de mãos dadas com uma criança. Ela pergunta se aquele circular passa perto do shopping a uma quadra da praia. Eu confirmo. “Ela quer ver a Barbie, está a semana inteira falando nisso”, me diz numa mistura de empolgação e obrigação. Me disponho a avisar quando chegasse o ponto, uns dois quilômetros e meio antes da minha descida. “Vamos só tirar umas fotos por ali, nos enfeites do shopping, depois voltamos. Ela nasceu com um tipo de má formação e só começou a enxergar lá pelos dois anos, então se assusta e chora se estiver numa sala escura como a do cinema. Mas a Barbie… Ela só fala da Barbie”, complementa. “A Barbie, mamãe”, diz a garotinha com uma doçura incurável. Aviso quando chega o ponto de ônibus perto do tal shopping. Foi a coisa mais importante que fiz na semana. Quando elas vão embora, já não me importa a peça de teatro daqui a pouco, nem o filme de amanhã ou a prova de depois de amanhã. Barbie valeu a pena por aquela curta viagem.
22 DE JULHO, SÁBADO
Muita gente vestindo rosa no cinema. Entre a praça de alimentação e as salas lotadas, um misto de pertencimento e animação. Homens de rosa, mulheres de rosa, crianças de rosa, idosos de rosa, velhinhas de rosa. Entro na sala 10 para ver Oppenheimer com duas certezas: três horas de filme é bastante coisa e existem homens adultos com a idade mental inferior aos 12 anos da classificação indicativa de Barbie.
23 DE JULHO, DOMINGO
5h15: O despertador do celular está agendado para 5h30, mas a minha ansiedade e o pavor do barulho irritante de um galo cantando me faz acordar com quinze minutos de antecedência. Um dos segredos para nunca me atrasar é mudar a configuração para o barulho mais irritante possível. Assim, evito o botão soneca. Mas eu acordo antes do horário agendado até se coloco uma música agradável para me tirar da cama. Depois do banho, quebro a promessa de relaxamento total antes da prova: passo pano no xixi da cachorra, recolho o cocô dos gatos, varro a cozinha, lavo a louça, coloco a roupa pendurada no varalzinho para tomar sol no quintal. Tudo isso antes de tomar café da manhã, enquanto leio textos de colunistas de jornal impresso porque não perdi a mania de ler colunistas de jornal impresso aos domingos.
7h30: Entro no VLT lotado e desconfio que quase todo mundo vai para o mesmo lugar para fazer a mesma prova do mesmo concurso público. Suspeita parcialmente confirmada ao descer na estação, mas boa parte dessa gente vai para outras escolas e universidades. Lembro que a Terra gira ao redor do Sol, não de mim.
9h22: A prova começa com 22 minutos de atraso porque os fiscais de sala são meio desajeitados. Demoram um tempão distribuindo o caderno de perguntas e a folha de respostas. Outro tempão para ler as instruções e ninguém reclamar caso tenha o azar de ser desclassificado ali, na frente de todo mundo. Não me irrito, preciso ser compreensivo com gente desajeitada.
10h25: O tempo mínimo na sala era de uma hora. Quando digo que terminei, me perguntam se não quero ir ao banheiro antes e avisam que não é permitido deixar resíduos nos sanitários depois de entregar a prova. Respondo que não, estou tranquilo. Me perguntam se tenho certeza e penso na boa estrutura da grande faculdade, que me permitiu não ter maiores preocupações nos vinte minutos antes de entrar na sala, quando dei descarga no meu nervosismo. Vou embora e corro vergonhosamente pela calçada para não perder o ônibus passando na frente da universidade assim que cruzo o portão.
16h45: De novo no VLT, dessa vez a caminho do cinema. Me sinto grato a seja lá quem inventou esse aplicativo que mostra os horários do transporte público. Se o ônibus é entupido de gente e não tem ar condicionado, se a cidade é feita para os carros e não para as pessoas, se as campanhas políticas locais são financiadas majoritariamente por viações pouco ou nada preocupadas com a mobilidade urbana e muito preocupadas com o lucro, pouco importa: a internet que escraviza também ajuda a passar o tempo e a saber se ficaremos muitos minutos de pé, tomando sol, esperando o veículo da categoria D ou o trenzinho do asfalto chegar.
17h40: Sessão lotada, como previsto. Fila para comprar ingresso, fila para validar ingressos comprados por aplicativo, fila para tirar fotos no cartaz na entrada do cinema, fila para tirar fotos no minicenário do filme num papelão colorido maior do que eu. Tem camisa rosa, saia rosa, calça rosa, casaco rosa, bermuda rosa, meia rosa, tênis rosa, crocs rosa, celular rosa, boné rosa, touca rosa. Até a loja de coxinhas ali perto investiu em bexigas dessa cor. Me surpreendo com a pipoca doce ainda vermelha, como o meu casaco, comprado há pouco tempo na loja de tênis na internet. Não é grande coisa, mas substitui com dignidade a blusa comprada em 2013 e recém-rebaixada para a categoria “roupas de ficar em casa”. Atrás de mim, o rapaz tenta impressionar a moça: “Se esse país investisse em cinema, também teria um filme da Suzy, a boneca brasileira”. Prevejo palmas para o telão depois de duas horas e me conformo, culpando meu deficit de alegria banal. Do meu lado esquerdo, três amigas. Do meu lado direito, um casal. Já faz bons anos que curto ir ao cinema sozinho, me livrando da disponibilidade de agendas, filmes dublados, perguntas idiotas sobre o que acontece na tela e atrasos capazes de reduzir a minha expectativa de vida. O trailer começa enquanto algumas pessoas ainda pedem licença e desculpas segurando baldes de pipoca. Os baldes são azuis.
19h45: Caralho, que filme debochado! Eu ia falar do roteiro e das atuações e de toda aquela maluquice, mas vejo o VLT chegando na estação a meia quadra de distância e, como não sou crítico de nada, corro para não esperar meia hora pela saída do próximo trenzinho a céu aberto.
23h: Cansado, vou tomar banho antes de dormir. Tiro a roupa e percebo que Barbie não tirou nada de mim. Entendo porque os marmanjos supostamente formados e certamente estúpidos se incomodaram. Como na psicoterapia, olhar para dentro de si tem gosto amargo.
24 DE JULHO, SEGUNDA-FEIRA
Nas amenidades que abrem toda reunião de trabalho, falo de Barbie e Oppenheimer. É um raro momento de interesse sincero. Uns riem quando o assunto é o primeiro filme e demonstram indiferença ao tratar do segundo. Outros se empolgam antes de falarmos de textos descartáveis, clientes exigentes, imagens coloridas e postagens esquecíveis. Me coloco no meu lugar e nem cogito atrasar as entregas do dia. Tenho contas a pagar e não são poucas. Falta uma semana para o começo das minhas férias. Férias, férias, férias. Me recuso a falar em descanso remunerado.