Berlin Alexanderplatz é um filme de três horas que passam voando. Se trata do conto do homem comum, narrado por uma voz onisciente que a divide em partes, que não fazem lá muito sentido, mas com reviravoltas entre elas. Ser dividido em partes torna a tarefa de assisti-lo mais fácil. É como um livro e seus capítulos.
Não à toa. Baseado no romance de Alfred Döblin, esta é a terceira vez que a história ganha vida nas telas, sendo que a do meio foi dirigido por Fassbinder na década de 80. Possuía 15 horas de duração. Quando estreou nos cinemas de Nova York os espectadores tinham que ir ao cinema em três noites consecutivas com o mesmo bilhete para ver o resto do filme. Por isso fico muito feliz com essas três horas dessa versão de Burhan Qurbani, diretor igualmente alemão, mas de origem afegã.
A história, adaptada para os tempos atuais, gira em torno da epopeia de Francis, refugiado de Guiné-Bissau que depois de praticar um ato de moral duvidosa para conseguir chegar a Berlim faz um pacto com Deus e decide, a partir daquele dia, ser uma pessoa boa, embora a partir daquele momento ele tome todos os caminhos errados. No meio do caminho ele encontra um psicopata, Reinhold (Albrecht Schuch, absoluto), que o alerta para a futilidade de sua promessa. O que é bem? O que é mal? “Você está querendo ser bom em um mundo mau.” Essa frase tem um misto entre coitadismo e fatalismo. Além de uma contradição filosófica braba.
O título do filme leva o nome do bairro de Berlim que é a terra dos refugiados que trabalham por merreca ou se prostituem como traficantes. É traçado um paralelo bacana com uma prostituta alemã, Mieze, e figuras marginalizadas com um certo poder de mafioso. Faz pensar em como os fora da sociedade conseguem sucesso por não poderem se dar ao luxo de viver uma vida honesta.
A narrativa de …Alexanderplatz é épica; com a voz de uma personagem que aparece apenas a partir da metade da história, esta mistura de filmes de gângsters com queda de impérios de drogas se vende como inesquecível. Porém, em vários momentos o foco se perde, e nesse jogo de tentar se manter de pé, Francis é o único desprovido de moral para tomar suas próprias decisões. Desde que chegou a Berlim ele continua sendo levado pela correnteza em sua jornada.
Curioso notar que no romance original ele era um assassino recém-saído da prisão. Adaptado, agora ele é um refugiado com a mesma sina, embora não exatamente a mesma, já que, assim como os heróis nos filmes de Hollywood, ele só pode matar e roubar se não for um ato egoísta. O herói não é, então, uma pessoa má que tenta se desvencilhar do passado, mas um inocente, que não tenta nada, pois é levado pelas absurdas circunstâncias de sua aventura em terra estrangeira, como servir de “backup” para as aventuras amorosas de Reinhold, que é incapaz de conseguir se relacionar afetivamente com as mulheres que leva para a cama.
A narrativa de …Alexanderplatz acaba sendo bonita o suficiente para nos hipnotizar. As atuações funcionam como uma imitação de trabalhos maiores, mas ainda com algum traço original que nos convence e retira, ao menos parcialmente, aquelas amarras de ceticismo que nutrimos de não ser mais possível fazer filmes bons com o mesmo tema de clássicos do passado. E mesmo sem uma história convincente, o trabalho do diretor Burhan Qurbani é consistente visto de todos os ângulos. A estética de sua equipe, o jogo de cores, os cenários, a localização geográfica e os ângulos de visão da ação favorecem as virtudes técnicas do filme e ocultam a ausência de detalhes na trama, como o mecanismo da venda de drogas.
A consequência é um ótimo filme, independente de sua origem e adaptação. A atmosfera vale mais que seus estereotipados personagens, cujas origens estão ocultas pela urgência do tempo, mas que acabam os tornando figuras misteriosas em um bairro abandonado de uma das capitais do mundo. Nós acreditamos nesta história contemporânea com muita poupa e cores. E isso basta para ficarmos três horas diante da tela. Ainda que tenhamos que nos ajeitar no sofá a cada troca de capítulo.
“Berlin Alexanderplatz” (Ale/Hol/Fra/Can, 2020); escrito por Martin Behnke, Alfred Döblin e Burhan Qurbani, dirigido por Burhan Qurbani, com Albrecht Schuch, Jella Haase e Welket Bungué.
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