Nada tinha me preparado para Bingo: O Rei das Manhãs. Nem toda ótima campanha de marketing. Nem a presença de Vladimir Brichta (que vem enfileirando ótimos trabalhos… estou falando de séries e novelas mesmo!). Nem eu ter vivido essa época, nem a oportunidade de ver o Bozo sendo xingado no telefone. Nem a presença da Leandra Leal (todo mundo tem um crushzinho nela!). Tampouco Daniel Rezende estreando na direção (depois de mais de uma década de trabalhos impecáveis de montagem) em roteiro do sempre interessante Luiz Bolognesi. Enfim, nada tinha me preparado para o quanto ¿Bingo¿ poderia se mostrar um dos melhores filmes de sua geração.
E isso não é exagero e nem contaminação de uma geração que mais parece a Luna (do Show da Luna) quando chega em suas aventuras achando que todas são ¿as melhores¿ (sim, meu filho tem apenas dois anos, então Discovery Kids passou a ser uma referência minha). Essa sensação é real, já que de umas duas décadas para cá, poucos filmes nacionais conseguiram juntar tantas qualidades técnicas e narrativas em uma mesma produção que, por sua vez, explode na tela em um capricho incrível.
Para quem não captou a referência inicial, Bingo: O Rei das Manhãs é a história real do nascimento do palhaço mais famoso da TV brasileira (talvez do Brasil e até do mundo). O nome e visual acaba sendo transformado para facilitar a vida da produção em termos de direitos de imagem. Mas se isso é verdade, mentira, meio ficção ou a mais pura realidade, pouco importa, já que ¿Bingo¿ é muito maior que qualquer referência.
No filme, acompanhamos o astro de pornochanchada Augusto Mendes (Brichta) que entre uma produção esquisita e uma figuração sem importância em uma certa ¿novela das oito¿, acaba dando de cara com um teste para um novo programa matinal de uma outra TV. Daí para frente, Mendes se torna o Bingo, um sucesso instantâneo das manhãs na televisão do país inteiro, o que o carrega por uma jornada regada a muita cocaína, putaria, decadência e risadas.
As ¿risadas¿ vem tanto do público na época, quanto dos espectadores agora, já que Mendes é um daqueles personagens magnéticos com os quais você se apaixona. O que acaba sendo um doloroso caminho para quem acompanhar ele. Seu Bingo é um espetáculo caótico, mal educado e genial, o que esconde um personagem que aos poucos vai colocando em prova até mesmo sua sanidade, sua identidade e, por fim, sua felicidade.
Esse terceiro ponto em questão surge na relação dele com seu filho, Gabriel (Cauã Martins). Quanto mais Bingo se torna um fenômeno para todas as crianças do país, menos ele é um pai para o menino. E se isso parece um caminho óbvio (e é!) para confrontar a destruição psicológica do personagem, tanto o roteiro de Bolognesi, quando a direção de Rezende, pontuam esse arco de modo forte, cruel, sensível e apaixonante.
Das brincadeiras de sombras até momentos estarrecedores como quando o próprio Bingo recebe uma ligação do filho ao vivo, a dupla responsável pelo filme faz esse caminho ser doloroso. O que vai ficando para trás é a figura de um pai apaixonado, mas que se transforma em um monstro sem limites. E isso sem nunca tomar o caminho mais preguiçoso de um personagem ¿mudando pelo filho¿, o objetivo ali é muito mais complexo e sensível. Mendes, ou Bingo, precisam mudar por eles mesmos.
Isso mesmo, no plural, já que tanto o ator, quanto o palhaço são entidades que se cruzam, mas nunca se comunicam. Quase uma luta onde ambos os lados querem tomar conta do outro. E é essa crise de identidade que move Bingo: O Rei das Manhãs. Mas até isso acontecer, não existe limite para essa relação monstruosa e disfuncional. É preciso uma tragédia que ¿mata¿ ambos para que o espectador possa acompanhar o fim dessa relação, e isso através de uma das cenas mais interessantes que o cinema nacional produziu nos últimos anos, um plano sequência que plana pelo alto da cidade enquanto serve de elipse entre o fim e o recomeço.
E esse momento não é único no filme. A surpreendente qualidade do trabalho de Rezende escorre por praticamente todos seus planos e movimentos de câmera. ¿Surpreendente¿, pois estamos falando de uma estreia na cadeira de diretor já cheia de planos longos que passeiam pelo estúdio e pulam entre personagens e ainda composições que carregam quase sempre uma quantidade enorme de significados. E não só o palhaço no topo do bolo do filho, mas sim momentos até muito mais sutis e sensíveis, como a posição da TV na casa do ator, closes que afastam o pai do filho e até uma luz que se apaga no alto de um quadro. Tudo compondo um filme que diz muito mais do que o que está em sua superfície.
O diretor vai ainda mais longe com uma propriedade de quem parece ter vários trabalhos nas costas para criar cenas antológicas e impagáveis. Rezende é dono de um ritmo incrível, o que faz de Bingo: O Rei das Manhãs uma experiência divertida e empolgante. Em mais um elipse simplesmente incrível (mais muito mais ágil e direta), Gretchen (Emmanuelle Araújo) sai do palco de um inferninho direto para o palco do programa, e o que vem na sequência disso é série de cenas que vão da glória à monstruosidade e terminam em um delírio visual e musical impactante e que leva o filme para um canto escuro da mente desse personagem, já nesse ponto tomado por uma loucura destruidora.
O fim da relação entre esses dois personagens (Mendes e Bingo) ainda passa por um imersivo plano que quebra seu horizonte e coloca o decadente ator em um caminho sem volta onde os holofotes apagados ficam para trás. E esse tipo de estripulia visual convive muito bem com soluções muito mais ¿comuns¿, mas que tem a mesma força, como enquanto o protagonista ¿passa um texto¿ com a mãe (e ainda coloca em jogo certo Complexo de Electra) e no delírio onde ele prevê o final do filme enquanto ¿limpa a cara¿ em busca de si mesmo por baixo do Bingo.
É lógico que isso tudo só funciona graças a um elenco que está a altura de toda essa maestria, que começa com um Vladimir Brichta solto e conseguindo encontrar o que talvez seja seu melhor trabalho. Compondo muito bem tanto o charmoso ator do começo do filme, quanto o palhaço que toma conta de sua vida, como esse terceiro personagem destruído pela sua insanidade.
Leandra Leal aproveita o pouco espaço que tem e consegue encontrar complexidade em um personagem que poderia ser esquecível, assim como Augusto Madeira e seu caótico cameramen rouba a cena. Sem esquecer da presença póstuma de Domingo Montagner em uma referência ao famoso palhaço Carequinha que que faz jus à carreira circense do ator morto ano passado. Mas Bingo ¿ O Rei das Manhãs é de Brichta e ele aproveita cada momento para definitivamente colocar seu nome no alto do cinema nacional (podem esperar sua cara em mais um monte de filmes nos próximos anos).
Principalmente, pois ele entende as necessidades de seu personagem e da trama, que não é simplesmente sobre a relação de um pai com um filho, e nem da jornada entre o sucesso e o desastre. O filme de Daniel Rezende tenta responder aquela pergunta que abre o filme: ¿Quem é o Bingo¿. Mais que isso, quem é esse personagem trágico que marcou uma geração inteira de crianças no Brasil através da fama em seu estado mais perturbador.
E como tudo isso, não tenho o mínimo receio de afirmar que eu não estava nem perto de preparado, principalmente, pois tenho certeza que ainda estarei pensando em Bingo: O Rei das Manhãs por um bom tempo.
“Bingo: O Rei das Manhãs” (Bra, 2017), escrito por Luiz Bolognesi, dirigido por Daniel Rezende, com Vladimir Brichta, Leandra Leal, Soren Hellerup, Tainá Muller, Augusto Madeira, Amanuelle Araújo e Cauã Martins.