[dropcap]Q[/dropcap]uanto mais longe daquilo que estamos acostumados como sendo nossa realidade, mais cuidadosa precisa ser a ficção. Em se tratando de apocalipse, o buraco é ainda mais embaixo. Bird Box não parece entender esse conceito e naufraga na hora que encontra suas próprias corredeiras.
Nada acachapante, mas ainda assim um fracasso daqueles que não permitem que a experiência siga as pretensões estabelecidas no começo interessante e na premissa que tinha tudo para prender sua atenção.
O livro que deu origem ao filme foi um best seller escrito por Jason Malerman e lançado em 2014, ele conta a história dessa mulher grávida que acaba sendo pega no meio de uma misteriosa invasão de algo que não tem aparência, mas que, quando encarado, provoca o suicídio. Tanto o livro, quanto o filme, acontece em dois momentos, o primeiro onde ela e mais duas crianças decidem enfrentar esse rio em busca de um lugar onde acham ser seguro; o outro, um flashback onde acompanha o começo desse “fim do mundo” e seu relacionamento com mais um grupo de sobreviventes em uma casa.
Sandra Bullock lidera esse elenco que, de uma hora para outra, se torna sensacional. Por mais que ela perca Sarah Paulson em pouco tempo de filme, quando cruza a porta dessa casa dá de cara com Trevante Rhodes (de Moonlight), Jacki Weaver (Reino Animal), Lil Rel Howery (Corra!) e John Malkovich. Cada um deles com seu momento de destaque para fazer valer o investimento, mas infelizmente sem, em nenhum momento, isso parecer algo maior e que faça jus ao elenco.
O problema maior é que a história não parece engatar a segunda, principalmente, por não conseguir se desgarrar de um punhado de outras referências. Todo mundo já está cansado de ver um grupo de gente diferente dentro de uma casa enquanto o mundo acaba lá fora, assim como, mais recentemente, por exemplo, Ao Cair da Noite entendeu a ideia de que se é para fazer a “mesma coisa de sempre”, que tente, pelo menos, surpreender alguém.
O roteiro é escrito pelo mesmo Eric Heisserer de A Chegada, o que demonstra que, talvez a culpa esteja até no material original. Mas como eu não li, o que me fica é apenas a impressão de, pelo menos, no cinema, isso poderia ter sido corrigido. Ainda mais quando Bird Box é simplesmente esticado demais.
Enquanto se entrecorta com a jornada pelo rio, o flashback parece não ter desenvolvimento de personagem, mas sim apenas cortes óbvios para momentos onde algo vai acontecer. Quem viu tanto o original Despertar dos Mortos, quando o remake Madrugada dos Mortos, sabe muito bem o quanto é importante deixar seus personagens viverem um pouco antes de acabar completamente com eles.
Bird Box parece ter pressa na maior parte do tempo. Enquanto está confortável com um ritmo lento e sem tentar explicar, tudo funciona muito mais eficientemente. Seu começo onde tudo passa a dar errado e nada é explicado, é tão interessante quanto o final onde você realmente acredita na fragilidade dos personagens e acompanha essa jornada dura e meio se esperança (por mais que o final, em si, seja meio bobinho). A ideia das vendas é uma solução eficiente e que resulta em momentos de tensão interessantes, como em um ataque no rio e a sequência na floresta.
O que estrega o ritmo é justamente enquanto está todo mundo sem vendas e se esforçando bastante para arrumarem uma desculpa para colocarem suas vidas em risco. Um esforço que leva até ao um tropeço gigantesco na sua própria suspensão de descrença.
Depois de quase uma hora batendo na tecla do “não poder olhar”, fica difícil aceitar tão facilmente que agora o inimigo pode olhar e, ainda assim, se permitem planejar um golpe perfeito. É lógico que isso pode parecer um spoiler, mas quem está acostumando com filmes de terror com esse tipo de temática sabe que a desgraça vem sempre com uma porta aberta (e nem o elogiado Ao Cair da Noite foge disso).
A direção prática e direta da dinamarquesa Susanne Bier, pelo menos, compensa todos esses equívocos e a arranca de lá alguns bons momentos e composições. Bier pode acompanhar esse tédio, mas quando tem a oportunidade, consegue sempre aumentar o ritmo e entregar um bom fechamento para cada sequência.
Já sobre os “passarinhos da caixa”, eles funcionam bem até o momento onde, lá para o final, eles são simplesmente esquecidos e poderiam resolver boa parte da tensão final, o que acabaria bastante com a graça. Portanto, é mais que compreensível esquecer eles um pouco de lado e ir aproveitar o fim do mundo do jeito que ele deve ser aproveitado.
“Bird Box” (EUA, 2018), escrito por Eric Heisserer, à partir do livro de John Malerman, dirigido por Susanne Bier, com Sandra Bullock, Trevante Rhodes, John Malkovich, Sarah Paulson, Jacki Weaver, Rosa Salazar, Danielle Macdonald, Lil Rel Howery e Tom Hollander.