Lançado em 1982, Blade Runner: O Caçador de Andróidesredefiniu a ficção científica e tornou-se um marco cinematográfico tanto estética quanto tematicamente. Em meio à neblina e à chuva da Los Angeles de 2019, acompanhamos uma história sobre a crueldade dos seres humanos e a humanidade tocante de criaturas sintéticas. Agora, voltamos a seu mundo neo-noir futurista com este Blade Runner 2049, que honra todas as qualidades do original e ainda consegue se estabelecer como uma obra própria, que expande a conversa em vez de simplesmente repeti-la.
Trinta anos depois dos acontecimentos do primeiro filme, os blade runners ¿ ou caçadores de androides ¿ continuam existindo, ainda que com algumas modificações. A nova missão do grupo é encontrar e eliminar modelos mais antigos de replicantes, aqueles que restaram dos tempos da agora falida Tyrell Corporation e que, ao contrário das novas versões da Wallace Corp., não precisam obedecer ninguém. Nosso protagonista, K (Ryan Gosling), vai até uma fazenda na desolada área rural da Califórnia, que é gerenciada pelo replicante Sapper Morton (Dave Bautista). Lá, K faz uma descoberta surpreendente que o leva a uma investigação que, além de colocar a própria humanidade em risco, também o faz questionar tudo o que ele sabe sobre si mesmo.
Falar muito mais do que isso sobre a trama de Blade Runner 2049 é estragar o prazer de reviravoltas inteligentes e que chegam de maneira inesperada. Mas, é claro, este é um filme que certamente não precisa de suas reviravoltas para funcionar, pois está muito mais preocupado em construir sua atmosfera do que em sua trama ¿ algo não apenas herdado do filme original, mas também uma característica que o diretor Dennis Villeneuve, dono de uma filmografia impecável, já demonstrou possuir. As duas histórias de Blade Runnertem tramas relativamente simples ¿ a complexidade está na forma com que os cineastas, incluindo os roteiristas Hampton Fancher (que também co-escreveu o filme de 1982) e Michael Green as exploram.
E isso é feito aqui de maneira fenomenal. Revisitamos os arranha-céus gigantescos, as ruas decrépitas e a chuva e neblina incansáveis de Los Angeles, tudo isso sob a direção de fotografia do gênio Roger Deakins (se ele não ¿ finalmente ¿ levar todos os prêmios da categoria, não sei mais o que poderia fazer para ser reconhecido na temporada de premiações). Mas ele e Villeneuve nos levam também aos arredores da metrópole, onde a decadência (que tudo indica ter sido causada por algum incidente nuclear) trouxe uma devassidão total. É impressionante perceber a diferença na fotografia e na paleta de cores desses dois ambientes tão distintos ¿ enquanto Los Angeles é cinza com ocasionais tons neon, possui tons fortes e é sufocante, a área rural incomoda com seu vazio e com suas cores claras, que isolam e escondem tudo ao redor das poucas pessoas que circulam por ali. Há, ainda, a sede da Wallace Corporation, representação perfeita da megalomamia de seu comandante, Niander Wallace (Jared Leto). Depois de nos acostumarmos com os tons frios do restante da projeção, a megacorporação nos surpreende com seus dourados e laranjas extravagantes, que rendem planos belíssimos como aquele que traz Luv (Sylvia Hoeks) caminhando por uma ponte em direção ao escritório de Wallace. É exatamente o tipo de sede que uma companhia gigante teria 30 anos depois da pirâmide da Tyrell Corp.
Isso talvez seja o maior trunfo de Blade Runner 2049: a capacidade do filme de expandir o universo em que se insere, reconhecendo a grandiosidade do original e querendo fazer parte dela a sua própria maneira. Nesse sentido, K revela-se um protagonista fascinante. Ryan Gosling entende cada nuance de K e, mesmo mantendo-se frio e racional, também traz uma certa vulnerabilidade que é fundamental para o personagem. O arco dramático de K baseia-se principalmente no fato de que ele é forçado, em duas ocasiões distintas, a rever tudo o que sabia até então ¿ quando ele começa a aceitar e a entender melhor a primeira descoberta, a segunda o surpreende e faz com que ele perca o chão mais uma vez. Enquanto isso, Harrison Ford retorna a seu icônico personagem não apenas com naturalidade, mas também com uma carga emocional surpreendente e que é imprescindível para o terceiro ato. O elenco coadjuvante também faz um trabalho excelente, demostrando mais uma vez o talento de Villeneuve para dirigir atores. Jared Leto nos lembra de seu talento com uma performance cuidadosa, fazendo de Niander Wallace um homem assustador por sua convicção de que, por exemplo, a proibição da escravidão é um sinal da fraqueza da humanidade. Robin Wright e Dave Bautista deixam impressões fortes com seu pouco tempo de tela.
Finalmente, Sylvia Hoeks e Ana de Armas ¿ que dão vida, respectivamente, a Luv e Joi ¿ interpretam duas das figuras mais interessantes de Blade Runner 2049. Joi é uma espécie de assistente virtual que aproveita cada segundo em que pode andar pelo mundo com um corpo próprio, cujo relacionamento tocante com K rende o belo momento em que sua figura sai de um enorme outdoor para apontar a solidão do protagonista ¿ uma imagem que, mais uma vez, demonstra a expansão proporcionada por este filme, já que é o produto de uma época em que o poder das grandes corporações encontra-se ainda mais forte e, mais do que isso, em que essas empresas desejam ativamente reforçar sua influência após os acontecimentos que resultaram no blecaute (evento que é mencionado de passagem aqui, mas que é aprofundado no curta Blade Runner: Black Out 2022). Já Luv tem seu próprio arco dramático a percorrer, envolvendo sua devoção a Wallace e seu crescente entendimento da empatia que sente por seus iguais. E repare em como o nome das duas mulheres, Joi, “Alegria”, e Luv, “Amor”, as caracterizam como objetos, cuja única função é aprimorar a vida e o estado de humor de seus mestres.
A cereja no bolo de tudo isso é a sensacional trilha sonora comandada por Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer. Honrando as icônicas canções compostas por Vangelis para o filme de 82, os acordes grandiosos da nova trilha constantemente crescem a ponto de sufocar, ajudando assim a construir a atmosfera visceral da obra. Pois se há algo em que Blade Runner 2049 supera o original é na maneira fria e lenta com que conta sua história ¿ e isso, dentro da proposta do filme, é um grande elogio. É o tom calculado e cerebral do longa que traz tanta força para seu terceiro ato, repleto de emoções complexas e profundas, mas que ainda assim são exploradas de maneira racional.
Afinal, estamos lidando com temas gigantescos aqui. Blade Runner 2049 continua a discussão sobre a humanidade dos replicantes e sobre a falta de humanidade das pessoas “de verdade” e, em cima de tudo isso, analisa o que significa ser humano e, principalmente, a importância de nossas memórias. Seriam nossas próprias lembranças mais reais do que as memórias implantadas dos androides? Ora, se considerarmos que “o caos de nossas emoções”, como alguém declara aqui, sempre vai remoldá-las, então, talvez possamos confiar nelas tanto quanto um replicante pode confiar em sua história de vida fabricada. Afinal, de qualquer maneira, nossas memórias são fundamentais para formarmos nosso caráter e nosso senso de individualidade, mas sempre as enxergamos pelo viés tanto do presente quanto do que sentimos quando as vivenciamos.
Blade Runner 2049 nos leva a pensar em seus temas de forma inteligente, segura e complexa, experiência que torna-se ainda mais marcante quando inserida na atmosfera que Villeneuve, Deakins e todos os artistas envolvidos na frente e atrás das câmeras constroem de maneira fenomenal. Esta é, certamente, uma continuação à altura do clássico que a antecede.
“Blade Runner 2049” (EUA/RU/Can, 2017), escrito por Hampton Fancher e Michael Green, dirigido por Dennis Villeneuve, com Ryan Gosling, Harrison Ford, Ana de Armas, Jared Leto, Sylvia Hoeks, Robin Wright, Dave Bautista, Mackenzie Davis, Mark Arnold e David Dastmalchian.