O novo lançamento da Netflix, Camaleões, tem um problema de conceito. Por mais que um camaleão seja um réptil, o filme não usa o pequeno lagarto que muda de cor como metáfora, mas sim sua classe. Um suspense sobre seres rastejantes e com sangue que se adapta à temperatura do ambiente. E por mais que algum deles troquem de aparência para se esconderem no lugar onde habitam, quando são descobertos, é impossível deixar de vê-los.
Mas talvez a maior arma de Camaleões seja não desnudar tudo isso logo de cara. O roteiro escrito pelo diretor Grant Singer em parceria com Benjamin Brewer e com seu protagonista Benicio Del Toro, antes de qualquer coisa, é sobre esse misterioso assassinato de uma corretora imobiliária dentro de uma enorme mansão e um detetive (Del Toro) às voltas com uma investigação que não é sobre o que parece ser.
Um clima que perdura sobre todo o filme enquanto o protagonista vai se perdendo entre a vontade de acabar com todo o caso e seguir uma espécie de instinto que o coloca em um lugar incômodo que vai o empurrando até uma encruzilhada moral.
Do lado de cá da câmera, Grant Singer estreia em longas depois de uma carreira cheia de clipes de gente como Shawn Mendes, The Weeknd e Lorde. Um primeiro trabalho que impressiona, principalmente, por saber exatamente o tom, clima e poder de cada cena. Quando precisa ser impessoal e olhar de longe o personagem de Justin Timberlake, Will Grady, marido da assassinada, o faz até de fora da casa. Quando conhece o protagonista, quase esfrega a câmera em seus olhos.
Um entendimento de cena que não é esquecido durante o filme inteiro. Um cuidado para não mostrar demais e nem deixar o filme pesado e cheio de informações e reviravoltas. Tudo é manipulado e construído com uma calma que ganha o espectador fã desse tipo de suspense meio thriller e com o pé no policial.
Nada parece ser o que realmente é, não por se esconder em algum tipo de sombra ou mentira, tudo fica mais perto, justamente, de estar rastejando sob o olhar do protagonista, mas de um jeito tão sutil que é como se ele próprio se recusasse a aceitar. Uma trama inteligente e que aposta em um público igualmente preparado para se divertir nas nuances e detalhes de um cenário com tons cinza suficientes para que os culpados sejam não vilões, mas sim pessoas com verdades e intenções deturpadas pelas facilidades de corromper o sistema e que parecem possíveis. Não são, e o protagonista está lá para lembrar todos disso.
Para isso funcionar, o filme de Singer parece absolutamente interessado não só no detetive Tom Nichols de Del Toro, mas também nas várias outras facetas do personagem. Das que se misturam com o caso, até sua vida de casado e relação com parceiros, amigos, testemunhas e até o marceneiro reformando sua cozinha. De cara, tudo meio misturado, mas logo deixando clara a intenção de construir esse personagem tão profundo e tridimensional que leva o filme consigo para um lugar de tensão e uma certa iminência. Quanto mais o filme chega perto do fim, mais o espectador tem certeza de que não haverá nenhuma opção a não ser aquela que vai acontecer.
E quando ela acontece é violenta, rápida, cruel e poderosa.
É lógico também que todo esse peso no colo de Del Toro é como um presente para o ator. O resultado é mais uma atuação impressionante do porto-riquenho que já se tornou um dos rostos mais reconhecidos de sua geração em Hollywood. Uma fama que vem, justamente, pela qualidade de seu trabalho, principalmente em momentos como esse, onde ele parece se testar diante de um personagem tão complexo, difícil e confiável.
Além de uma trama poderosa e firme, que confia na inteligência de seus espectadores e sabe construir bem suas surpresas e reviravoltas, e um diretor que sabe usar, tanto o rebuscado quanto o direto e objetivo de um jeito à favor de sua história, Camaleões poderia mesmo se chamar Répteis, mas ainda assim estaria nas costas de Del Toro. Um personagem absolutamente bem escrito pela trama, e ainda melhor aproveitado pelo diretor, e que ainda se permite ser vivido por um ator que faz cada um dos seus trabalhos serem inesquecíveis.
“Reptile” (EUA, 2023); escrito por Grant Singer, Benjamin Brewer e Benicio Del Toro; dirigido por Grant Singer; com Benicio Del Toro, Justin Timberlake, Eric Bogosian, Alicia Silverstone, Domenick Lombardozzi, Frances Fisher, Ato Essandoh e Michael Pitt.
SINOPSE – Depois da misteriosa morte de uma corretora imobiliárias de casas suntuosas do suburbio americano, um detetive começa a desconfiar que há mais coisas além do assassinato, e isso pode mudar sua vida inteira.