*o filme faz parte da cobertura da 43° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
[dropcap]E[/dropcap]m um ano, há mais de 500 crianças desaparecidas na Sérvia, mas essa é uma banal estatística exibida nos créditos finais de Cicatrizes, prêmio do público no Festival de Berlim e agora chegando ao Brasil na Mostra de São Paulo. Ela não nos diz nada sobre as famílias que aguardam eternamente por essas crianças. E o que dirá, então, dos que vivem um luto que pode não ter acontecido.
Mais do que remoer o passado, a direção de Miroslav Terzic demonstra em seu Cicatrizes um absoluto controle de nossas percepções mais básicas da realidade. Aproveitando ao máximo o econômico e eficiente roteiro de Elma Tataragic, a falta de diálogos na maior parte do tempo é porque tudo que teve que ser dito nesses 18 anos de luto pelo bebê perdido já foi dito. Por isso prestamos atenção completa nessa mãe, Ana (Snezana Bogdanovic) que já não tem mais palavras, e que caminha incessantemente em busca da resposta verdadeira sobre o paradeiro do seu filho, dado como morto após o parto, mas cujo corpo nunca foi revelado.
O que o filme quer que sintamos não se traduz em palavras. Por boa parte do tempo é o peso enorme carregado por Ana, que acorda todos os dias sem uma resposta satisfatória do destino de seu filho. Ela realiza mecanicamente suas tarefas do dia. E naquele que seria o aniversário de 18 anos de seu filhoe, recebe alguns sinais, intuitivos e objetivos, de que deve retomar sua busca. Com isso vamos desvendando seu passado ao mesmo tempo que nos conectamos com seu presente: é como se sua vida estivesse suspensa todo esse tempo.
O resultado disso é angustiante, pavoroso e inesquecível.
Miroslav Terzic a coloca em primeira pessoa, porque ela é responsável pela nossa percepção por boa parte do tempo, embora não seja a única. A transição final que é feita entre a visão de diferentes personagens da história é linda, pois é transparente, e sentimos apenas nos momentos finais. Há um momento que sua filha toma as rédeas da investigação conduzida por Ana, mas não há estranheza do espectador, mas alívio, pois finalmente o peso de Ana começa a ser dividido com sua família. Esta é a história da busca de uma mãe atormentada, mas se universaliza no seu terceiro ato.
Cicatrizes também é uma luta do indivíduo contra um sistema impessoal, engessado e corrupto. Por boa parte do filme vemos Ana caminhando, minúscula, através de imensos corredores, prédios imponentes e guichês vazios. Ela transita por velhos e novos caminhos e não dá ouvidos a ninguém que a tente a dissuadir ou mesmo ameaçar. Mas sua família e amiga estão cansados de ver esta mulher ausente por tanto tempo, e não se pode julgá-los. Um acontecimento traumático desses pode consumir o resto da vida de uma pessoa, definir a sua existência. Por isso se torna tão importante a luta de Ana.
Os recursos que ela dispõe para investigar o caso de seu filho são quase inexistentes, o que cumpre múltiplas funções, desde a economia na complexidade da trama, onde o resultado de uma busca da base de dados do hospital pode mudar toda sua vida, até a facilidade com que a corrupção se instala em todos os lugares em que ela clama por uma resposta, seja o hospital ou até mesmo a ineficiência policial, o que acaba sendo um tipo de injustiça.
Cicatrizes é um retrato simples, porém tenso e efetivo. Que ilustra uma situação da vida de muitas pessoas e guarda um verdadeiro tesouro em sua cena final, um movimento sutil que é a cereja do bolo que assina um trabalho impecável. Cinema real e carrega a impressão exata da arte de extrair significados complexos em banais imagens em movimento.
“Savovi” (Ser, 2019), escrito por Elma Tataragic, dirigido por Miroslav Terzic, com Snezana Bogdanovic, Marko Bacovic e Jovana Stojiljkovic.