Cinefilia Crônica | Eu sei o que vocês fizeram na eleição passada


[dropcap]E[/dropcap]la insistia para irmos ao apartamento dos pais em um fim de semana qualquer. Eu enrolava e inventava desculpas, apelava ao cansaço da semana de trabalho, lembrava que não poderíamos adiar outra vez aquele encontro com os amigos. Anteontem, não teve jeito.

Era sábado e uns amigos da família estariam por lá. Por parte da mãe, uma artista plástica, iriam os mais intelectualizados. Da parte do pai, um engenheiro, os mais galhofeiros. Quem quisesse beber, bebia. Quem se interessasse por ver um filme na televisão da sala, maior que a janela do meu quarto, assistia. Cerveja e quitutes à vontade, um golpe baixo para eu encarar a maratona de pais preocupados. Ela me avisou que eles não eram monstros, já estávamos juntos há três meses. Fui intimidado.

Quando cheguei, perguntei três vezes ao porteiro como faria para chegar ao elevador certo. Condomínios fechados têm dessas. Passando pelo estacionamento, reparei nos carros batizados com siglas. Um emaranhado de letras misturadas a números que eu não entendia bem. Tão melhor era a época em que veículos tinham nomes de verdade.

As paredes brilhavam e fiquei meio sem graça por chegar lá de mãos abanando. A empregada se despediu e o pai dela pediu que ficasse à vontade. O apartamento era gigantesco. Ela me deu um beijo e me apresentou aos coroas. Foi até à cozinha ajudar a mãe. De lá, deu uma espiada e riu com o canto da boca ao notar que dividia o sofá com o velho. Em casa, me acostumei a assistir televisão em paz. Fiquei assustado quando aquele senhor gritou para a televisão. Segundo ele, emissora era um antro de pilantras filhos da puta, desacostumados com a nova política que limpava o país depois de décadas de safadezas. Ele olhava para mim como quem pedia aprovação e eu não sabia onde enfiar a cara. Peguei minha cerveja e reparei nos convidados chegando.

Gente bem vestida e educada. Ela falou baixo para eu nem dar muita importância quando me olharam dos pés à cabeça, talvez por vestir uma bermuda confortável, um cadarço enfiado dentro do tênis e uma camisa comprada na internet, com uma frase meio politizada.

O pai dela levantou e foi para a varanda. Tomava umas e falava alto. Os amigos da mãe sentaram nas poltronas e pufes ao redor do sofá. Queria ela do meu lado, ela disse que já voltava. Sugeri um lançamento da Netflix e me olharam em tom de reprovação. Ninguém sairia de casa para ver essas merdas de filmes brasileiros, a mãe dela disse. Todos riram e concordaram. Quando perguntou se eu já estava bêbado, vieram as gargalhadas. Eu era a piada.

De longe, ela olhou para mim e pude ler seus pensamentos: eu estava proibido de comentar ali, diante dos amigos intelectualizados da mãe, que tenho dois roteiros nas mãos de uma produtora, tampouco da reunião na próxima semana para assinar contrato como redator na emissora odiada pelo pai. Apontaram para minha camisa vermelha e perguntaram se eu era destro ou canhoto, pois quem escreve com a mão esquerda é mais burro.

Mais risos, mais constrangimento. Quis tomar umas na varanda, mas fiquei com medo de lá a coisa estar pior. Escolheram um filme hollywoodiano. Os vilões eram caricaturas do Oriente Médio e os amigos da mãe vibravam com a beleza dos bombardeios ao que chamaram de povo selvagem. Eu me sentia cada vez mais estranho.

Vi seu pai, lá fora, erguendo os óculos e olhando para o celular. Entrou furioso na sala e mandou pausarem o filme. Eu era um traidor, estava ali, explícito em uma foto de perfil antiga do Facebook. Aquele não era lugar para gente como eu, degenerada e da balbúrdia. Me chamaram de “mamateiro” e me cercaram. Uma decepção a filha ter dedo podre para escolher namorados. Ela ficou muda e uma lágrima escorreu no canto de seu olho. Fui convidado a me retirar e senti um chamado nos meus ombros.

– Amor, amor, acorda. Vai dormir logo aqui, na primeira vez? Meu pai tava rindo…
– Deixa ele, filha. Tá cansado, rapaz?

Olhei para a TV e ainda rolava o jornal.

– Levanta, vai lavar o rosto.

Ela me apontou o banheiro, a segunda porta à direita no corredor. Quando voltei, a mãe dela perguntou se eu já tinha visto um filme recém-lançado, sobre monstros ou coisa assim.

– Não vi, não. A senhora vai dar risada, mas eu não vejo filmes de terror, tenho pesadelos…

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