Cinefilia Crônica | Michael Scott é meu chefe


[dropcap]P[/dropcap]recisei pausar o streaming para me recuperar do constrangimento. Ver Steve Carell na pele de Michael Scott dançando na sala de reuniões ao som da paródia “Let’s Get Ethical” ao lado de Amy Ryan como a caricata Holly Flax foi demais para mim.

E não foi a primeira vergonha alheia sentida ao assistir à excelente versão americana de The Office. A identificação é imediata com ambientes de trabalhos tóxicos ou sem sentido durante os 23 minutos por episódio. Em alguns momentos, os funcionários da fábrica de papéis Dundler Mifflin olham para a tela e sentimos compaixão, pois já passamos por experiências iguais as expostas pelo falso documentário que nos faz colocar a mão no rosto e abaixar a cabeça com frequência.

O senso de humor grotesco de Scott é o maior dos exemplos. Quando ele pensa ser engraçado contando anedotas péssimas, alterando a voz ao imitar toscamente uma personalidade do cinema ou pegando o microfone para tentativas frustradas de stand up na festa da firma, penso nas famigeradas piadas de chefe. Nos dias em que o superior hierárquico solta uma tirada de mau gosto e nos sentimos pressionados a mostrar os dentes para não perder o emprego, há um Michael Scott encarnado ali.

Pensei em pesquisar os prêmios recebidos pela série entre 2005 e 2013, anos de exibição. Como tenho TV por assinatura há menos de dez anos, peço perdão aos raros leitores e leitoras pelo atraso na constatação da genialidade dessa comédia.

Estou na metade das nove temporadas e ainda não me deparei com cenas mostrando os desnecessários cumprimentos entre colegas de trabalho a cada encontro nos corredores do escritório. Se ao cruzar com a mesma pessoas por 50 vezes no dia entre sua mesa e a máquina de xerox você não balançar a cabeça e balbuciar um “opa”, ganhará a fama de mal educado em todos os cantos do andar, da copa ao elevador.

Outros aspectos estão expostos naquele ambiente corporativo, um eufemismo para falar do trabalho tão forte quanto o “colaborador” nos faz esquecer a condição de empregado descartável. A falta de ter o que fazer para quem já cumpriu sua função e espera bater o cartão ao fim do dia, as picuinhas para puxar tapetes, os flertes envergonhados, a suposta “desimportância” dos seres humanos em cargos inferiores atribuída por engravatados. Tudo com um constrangimento que, se não gera gargalhadas, deixa um nó na garganta e a sensação uma obra baseada em nossos fatos reais.

E Scott é chefe com muitos méritos. As situações absurdas da série merecem ser comandadas por uma caricatura das boas. Não há funcionário que o leve a sério, a maioria o evita e vê nele um completo babaca que não sabe o que fazer. Ninguém diz isso, é claro, cada um com seus boletos.

Quem trabalha em escritório se diverte mais com The Office. Se eles se apegam a cargos e poder, nossa melhor forma de vingança é com poesia e humor, itens insuportáveis e inatingíveis para burocratas por vocação. Cada riso soa como uma lenta facada espiritual naquela gente patética escondida atrás da mesa com as quais convivemos para garantir a sobrevivência.

Michael Scott pode ser chefe, usar ternos, ter um carro do ano. Mas nunca vai deixar de ser babaca. Um doce babaca, que nos diverte a cada episódio, diferentemente dos que nos aborrecem a cada manhã. The Office é a vingança contra os chefes babacas.

E se eu for demitido após a publicação desta crônica, peço aos raros leitores e leitoras indicações de e-mails para os quais eu possa enviar meu qualificado currículo.

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