Scarlett Johansson é uma das maiores estrelas contemporâneas do cinema americano, ponto final. A atriz, que vem entregando performances elogiadas há mais de quinze anos em diversos gêneros de filmes, tendo inclusive sido indicada ao Oscar em 2019, entrou para o Marvel Cinematic Universe (MCU) em 2010, com uma participação que (quase) salvou da mediocridade o esquecível Homem de Ferro 2.
Desde então, Johansson vinha crescendo cada vez mais dentro do Universo Marvel e de muitos filmes desde então (nove filmes, que variam de co-estrelar – Capitão América 2 – O Soldado Invernal – a fazer participações pequenas, como em Capitã Marvel), sendo parte importantíssima para trazer mais personagens femininas interessantes e fortes para o MCU e também nos bastidores e contratos, brigando e conseguindo equalizar seus ganhos com seus colegas de elenco masculinos principais, como Chris Evans e Chris Hemsworth, tendo recebido apenas de salário no último Vingadores quinze milhões de dólares, tendo um saldo positivo tanto artística quanto financeiramente com o estúdio.
Tanto que, somente com os filmes da Marvel, Johansson deve ter ganho mais de 165 milhões de dólares durante seu contrato, sem contar com a sua última empreitada como a heroína. Dez anos depois, a cartada da atriz foi de encerrar seu ciclo com a Marvel com um filme solo da Viúva Negra, onde entrou como produtora executiva e protagonista.
O leitor do CinemAqui, bem versado nos bastidores do cinema, entende que a atriz, finalmente, ia embolsar ainda mais grana porque um crédito como produtora executiva significa porcentagem dos lucros de bilheteria e o MCU já rendeu para o estúdio aproximadamente 20 bilhões de dólares desde então, mais de 19 filmes depois da aposta arriscada com Homem de Ferro de 2008.
Só que veio a pandemia da COVID-19, fechando os cinemas desde março de 2020 até agora. Milhões de pessoas mortas e a necessidade de criar uma forma de continuar funcionando e gerando lucro forçou praticamente todos os grandes estúdios de cinema a investirem em serviços de VOD (Vídeo On Demand) ou streaming para pelo menos empatarem seus investimentos e não quebrarem.
Muitos serviços já existentes foram reforçados em seus acervos ou os estúdios criaram seus próprios. A Disney virou o maior conglomerado de entretenimento da história ao concentrar sob seu guarda-chuva a LucasFilm, a Marvel e, depois, a Fox, tendo propriedades intelectuais que valem dezenas, quiçá centenas, de bilhões de dólares.
Sua última cartada foi a criação do Disney+, serviço mundial de streaming, que engloba suas propriedades tradicionais, a LucasFilm e a Marvel, conta já com 100 milhões de assinantes (sem contar com o enorme acervo da Fox… ainda) e deu um impulso considerável na lucratividade e preços de suas ações nas bolsas de valores.
Mas tinha uma aranha nesse caminho…
A Aranha
O filme Viúva Negra estreou no final de julho, com renda até agora de mais de trezentos milhões de dólares pelo mundo e, no mesmo dia, entrou no serviço Disney+, tendo rendido na primeira semana quase 60 milhões. Isso, ainda em plena pandemia e com muitas incertezas sobre como ficará o mercado de cultura e, em especial, o cinema com tantos obstáculos e novidades.
Todo mundo feliz, certo?
Errado.
Fomos surpreendidos com a notícia que Johansson processou a Disney por quebra de contrato. A Viúva Negra jogou o Mickey nos tribunais e toda Hollywood acompanha, atenta, como vai terminar essa batalha.
Os representantes legais da atriz alegam, no processo, que a Disney, na condição de empresa mãe e distribuidora dos filmes feitos pela Marvel Studios, que é quem efetivamente tem a atriz sob contrato, prejudicou, intencionalmente, a possibilidade do filme ter boas condições de render bilheteria nos cinemas ao lançar, no mesmo dia, o filme no serviço de streaming e. Com isso, causar prejuízos à atriz pois os bônus definidos em contrato, já que consta como produtora executiva, dependem de a renda atingir determinados patamares durante sua estadia em cartaz.
Explicando melhor, Johansson é contratada da Marvel e não da Disney, mas alega que a “Casa do Mickey”, como matriz e distribuidora dos filmes do estúdio dos heróis, fez o lançamento simultâneo de forma deliberada para prejudicar os rendimentos do filme nos cinemas, diminuindo os lucros da atriz e usando o interesse do público pela personagem para aumentar os assinantes do streaming e, consequentemente, manter ou aumentar o preço das ações do conglomerado nas bolsas, sem que houvesse a compensação justa para Johansson.
Essa atuação da matriz teria causado então uma suposta quebra do contrato assinado entra a atriz e a Marvel, pois o documento definiria que o filme teria que ter uma janela, um determinado período de tempo, em cartaz nos cinemas para somente depois disso ficar disponível para VOD ou streaming.
Não por coincidência, o jornal Wall Street Journal publicou um artigo sobre o processo no mesmo dia em que foi dado entrada, tornando pública a briga entre as partes.
Não que seja algo sem precedentes. Estamos cansados de ver atores, diretores e roteiristas brigarem com os estúdios por causa de contratos e bônus. O que chamou a atenção foi a publicidade que se deu em torno disso.
Na terra da obsessão pela imagem, essas disputas normalmente se dão na surdina, sem alarde e por arbitragem.
Arbitragem é uma espécie de Judiciário privado, sem envolvimento estatal e cláusulas contratuais que passam desentendimentos para esse tipo de solução de conflito são muito comuns nos EUA e são, inclusive, previstos no Brasil.
Tanto lá como cá, a arbitragem tem como principal aplicação casos que envolvam interesses privados, como no caso de contratos entre atores e estúdios.
Como exemplo, a Warner, outro conglomerado gigante, no último ano, ou seja, de julho de 2020 até agora, tem feito acordos milionários com seus astros (Will Smith, Keanu Reeves, Gal Gadot, Patty Jenkins etc) para que os lançamentos simultâneos nos cinemas e no streaming possam ser feitos. No caso de “MM84”, Gal Gadot e Patty Jenkins receberam, cada uma, 10 milhões de dólares extras para que o filme saísse nos cinemas e no HBO Max no mesmo dia.
O Rato
Surpreendida pela ação judicial, a Disney reagiu de modo inédito e já antecipando parte de sua defesa: em declarações, a empresa qualificou o processo como “ganancioso, sem mérito” e a atriz como alguém “indiferente às perdas globais sofridas devido à Covid-19”.
Em outra parte de suas declarações, algo também nunca visto antes, a Disney entregou que Johansson já tinha recebido por volta de 20 milhões de dólares e que o lançamento simultâneo nos cinemas e streaming por acesso pago tinham totais condições de proporcionar os bônus que a atriz desejava. Divulgou que a receita do Disney+ Premier Access tinha passado de 60 milhões de dólares nos primeiros dias, algo que nenhum serviço de streaming tinha feito antes, isso sem contar a renda de bilheteria mundial do filme, que tinha chegado na semana passada a mais de 320 milhões.
Vozes da indústria (ReFrame, Women In Film e Time´s Up, ONGs que buscam a equalização de participação e remuneração entre homens e mulheres no entretenimento) se levantaram para classificar as declarações da Disney como “linchamento sexista de reputação” e uma tentativa de “caracterizar mulheres e garotas como sendo menos capazes e submetê-las a crítica infundada quando tentam proteger seus negócios e direitos”.
Em suma, o clima está fervendo e muita gente está atenta ao que pode resultar dessa ação. A Disney vem sendo criticada pelos produtores de conteúdo há um bom tempo por suas práticas negociais severas durante a pandemia e a Warner esteve na mira dos artistas por causa de sua decisão de lançar todos os filmes de 2021 simultaneamente em streaming e cinema. Dizem os participantes do mercado que a empresa pagou quase 200 milhões de dólares para compensar essa estratégia antes que virassem processos.
A atriz Emma Watson, de Cruella, também estuda entrar com uma ação por causa do lançamento simultâneo. Dwayne “The Rock” Johnson já declarou que não pensa em processar por esse motivo e que está satisfeito com o acordo por Jungle Cruise. E muitos outros o acompanham de perto.
Já se comenta que os contratos com enormes bônus de bilheteria para os atores, diretores e produtores estão com os dias contados. Outro aspecto do novo mercado é que, com a ascensão do streaming como produtor de conteúdo original e sem obrigação de retorno de renda, a qualidade dos projetos e filmes aprovados tende a cair, tanto artística quanto de entretenimento. Sem essa pressão, os produtores, diretores e atores tendem a fazer o mínimo para garantir o próximo projeto e mais nada.
A ver.
E Viveram Feliz Para Sempre… ou Não
Se, legalmente falando, a atriz tem possibilidade de vencer? A verdade é que não tem muita chance.
Afirmar que o lançamento simultâneo é fator importante para fazer a receita dos cinemas cair é uma realidade. Só que ela precisaria provar que a Disney influenciou a Marvel a aceitar isso de forma proposital para derrubar seus bônus de bilheteria, já que a vida útil do filme nas salas cairia muito, pois as pessoas que, em tese, retornariam para ver o filme prefeririam assistir de casa.
Isso poderia ser real se não fosse a pandemia. Ninguém sabe quanto tempo vai levar e se vai acontecer uma recuperação do mercado de cinema e de cultura como um todo.
Usar os lançamentos anteriores do MCU como parâmetro é despropositado. Todos os filmes da Marvel foram lançados antes da pandemia.
Não se ganha processo judicial com suposições e estimativas descontextualizadas. Nada que ocorria antes da pandemia se aplica agora, principalmente as rendas dos filmes. Alegar que deveria ter deixado Viúva Negra pelo menos de 90 a 120 dias em cartaz exclusivamente nos cinemas antes de disponibilizar para outros meios e que, se tivesse feito isso, a renda chegaria em muito mais do que já arrecadou, chega a ser um pensamento mágico.
É impossível afirmar isso.
O preço médio do ingresso de cinema nos EUA é de 10 dólares. A taxa cobrada para assistir um filme no Disney+ é 30 dólares.
O filme abriu com 80 milhões de dólares no fim de semana de estreia, fazendo a conta, temos que, por dia, 2 milhões e setecentas mil pessoas irem ao cinema assistir o filme. Em quase quatro mil salas.
Por outro lado, no streaming, só no final de semana de estreia, 700 mil pessoas pagaram para ver em casa.
A diferença é absurda.
Outra questão levantada pela atriz é que a Disney deliberadamente lançou o filme sabendo que o mercado estava fraco e usou essa oportunidade para alavancar o serviço de streaming próprio, quando poderia ter aguardado uma maior recuperação.
Viúva Negra está pronto há mais de um ano e meio e sua estreia foi adiada três vezes, desde maio de 2020. Até quando a atriz supõe que seria razoável aguardar e quando o mercado estaria forte novamente? Mais uma vez, suposições mágicas em ação.
Mais um aspecto que enfraquece o caso da atriz: porque entrar contra a Disney quando seu contrato é com a Marvel? Provar essa influência indevida da matriz sobre a subsidiária com intenção deliberada de forçar queda de receita e deixar de pagar bônus caracterizando quebra de contrato é bem frágil e complicado.
Alega por fim que, após a decisão de lançamento simultâneo ser tomada, a Disney e a Marvel ignoraram os pedidos de reunião da atriz para negociar novos termos. Nisso eu acredito. Mas isso seria ilegal? Não creio…