Todo ano é a mesma coisa: a cerimônia do Oscar não serve apenas para a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas celebrar os filmes e os profissionais que se destacaram ao longo do último ano, mas também para celebrar a indústria cinematográfica e, é claro, também a si mesma. Isso costuma dar origem a, por exemplo, inúmeras piadinhas sobre falta de diversidade, machismo, racismo, movimentos como o #OscarsSoWhite e outros problemas que assolam a indústria ¿ tudo isso enquanto pouca ação é tomada para que algo realmente possa mudar.
Este ano, o cenário parece um pouco mais promissor. Além de discursos que ativamente chamaram à ação e destacaram o quanto a inclusão e a representação são fundamentais quando falamos de arte, começam a ser percebidos com cada vez mais força as consequências da renovação pela qual a Academia vêm passando nos últimos anos. Entretanto, em meio a várias vitórias latino-americanas e alguns momentos significativos para as mulheres, o gênero feminino, no geral, foi bastante lembrado durante a cerimônia, mas isso não se traduziu em estatuetas douradas entregues para elas.
Isso acontece porque a Academia tem uma tendência a não embasar o que fala por meio de ações concretas. Um exemplo foi a montagem focada em homens e mulheres que quebraram as barreiras de gênero, raça e etnia em Hollywood, que foi apresentada por Ashley Judd, Salma Hayek e Annabella Sciorra, atrizes que assumiram papéis de liderança na organização Time’s Up e no movimento #metoo, destinados a apoiar as vítimas de abuso sexual no trabalho (dentro e fora da indústria cinematográfica) e a tomar medidas para que esse tipo de situação não mais aconteça. No vídeo, as cineastas Ava DuVernay e Dee Rees, mulheres negras, discutem suas jornadas. É claro que nenhum artista deve produzir sua arte pensando nos prêmios, mas é inegável o poder que o Oscar e outras premiações populares têm de colocar as obras contempladas (ou mesmo apenas indicadas) sob os holofotes. Entretanto, apesar de a Academia celebrá-las nessa montagem, as poucas nomeações recebidas por Selma e por Mudbound não se estenderam a suas diretoras ¿ respectivamente, DuVernay e Rees. Além disso, chamou a atenção também o fato de que o vídeo não discutiu em momento algum o que suas apresentadoras propuseram, ou seja, o abuso sexual na indústria cinematográfica.
Mais fortes são os clamores por inclusão vindos dos próprios premiados, que surgem como propostas e preocupações sinceras em meio às falas ensaiadas, roteirizadas e aprovadas pela Academia dos apresentadores. Nesse sentido, o momento mais catártico foi, definitivamente, o discurso de Frances McDormand, vencedora do prêmio de melhor atriz por seu belíssimo trabalho em Três Anúncios para um Crime. Ao receber sua estatueta, ela convidou todas as indicadas da noite, em qualquer categoria, a se levantarem.
“Olhem ao seu redor, senhoras e senhores, porque nós temos histórias para contar e projetos que precisam ser financiados. Não conversem sobre isso nas festas de hoje à noite; convidem-nos para seus escritórios daqui a alguns dias ¿ ou vocês podem vir para os nossos, o que ficar melhor para vocês ¿ e vamos lhes contar tudo sobre eles”
McDormand encerrou com duas palavras que podem fazer a diferença na indústria: inclusion rider, uma cláusula de inclusão que os nomes mais poderosos de Hollywood podem adicionar em seus contratos, garantindo assim que seus projetos terão elencos e equipes inclusivas em termos de gênero, raça, etnia etc. Assim, cada um pode fazer sua parte em nome dessa causa, resultando em uma indústria mais diversificada e onde todos terão mais igualdade de oportunidades.
Enquanto isso, o Chile fez história com Uma Mulher Fantástica, que tornou-se o primeiro filme com uma protagonista trans a levar uma estatueta dourada para casa. O sucesso e a excelência do longa devem muito a sua protagonista, Daniela Vega, ela mesma uma mulher trans ¿ algo importante de destacar quando consideramos que, em Hollywood, os personagens transexuais costumam ficar nas mãos de atores cis. A vitória da obra na categoria de filme estrangeiro já ocasionou mudanças concretas em seu país de origem. A presidente do Chile, Michelle Bachelet, recebeu a equipe de Uma Mulher Fantástica na terça-feira após a cerimônia, onde os parabenizou pela vitória no Oscar, a primeira do país.
Naquele mesmo dia, Bachelet concedeu o status de “extrema urgência¿ a um projeto de lei que dá às pessoas transexuais o direito de trocarem legalmente seu nome e gênero no documento de identidade, que estava no limbo desde 2013. Agora, com o novo status, a lei correra com mais rapidez pelo Senado. Em seu Twitter, a presidente declarou que “há um crescente consenso de que o Chile precisa concretizar uma lei de identidade de gênero. […] Pessoas transexuais não deveriam ter que ficar esperando!”. Bachelet ainda falou que, ¿assim como outras grandes expressões da nossa arte, o filme deu origem a conversas sobre os avanços sociais que o Chile demanda.¿
A própria Daniela Vega se beneficiará dessa lei, quando ela for aprovada. Depois de se reunir com a presidente, a atriz contou que ¿em minha carteira de identidade, há um nome que não é o meu nome. Porque o país em que eu nasci ainda não me deu essa possibilidade. E o relógio está girando e as pessoas pedem por isto: mudança.¿ Vega seria homenageada também em sua cidade natal, o distrito de Nuñoa, em Santiago, onde receberia a distinção de ¿Cidadã Ilustre¿. Entretanto, o prefeito declarou que ¿não podemos dar isto para uma mulher se sua identidade legal é masculina.¿ Para compensar a atriz, foi criado o ¿Premio Comunal a las Artes¿, algo como Prêmio Municipal das Artes, que ela recebeu. Entretanto, o título de Cidadã Ilustre terá que ficar para um futuro menos retrógrado.
E as premiadas? Tirando as categorias de atriz e atriz coadjuvante, as mulheres perderam em praticamente todas as categorias em que apareciam. Das treze categorias que tiveram mulheres entre as indicações (novamente, não contando as de atrizes), apenas três delas saíram vitoriosas: Kristen Anderson-Lopez venceu ao lado de seu esposo e parceiro habitual Robert Lopez por ¿Remember Me¿, canção original de Viva ¿ A Vida é uma Festa, e Lucy Sibbick, premiada juntamente com Kazuhiro Tsuji e David Malinowski pelo trabalho do trio no cabelo e maquiagem de O Destino de uma Nação. Além disso, nas categorias de curtas-metragens, a melhor produção live-action foi The Silent Child, dirigida por Rachel Shenton e Chris Overton. Greta Gerwig, Rachel Morrison e as demais indicadas foram para casa de mãos vazias.
Mas, em meio às vitórias majoritariamente masculinas, não podemos deixar de celebrar a diversidade. Jordan Peele tornou-se o primeiro negro a vencer na categoria de melhor roteiro original, algo que impressiona ainda mais ao considerarmos que Corra! foi apenas seu primeiro longa-metragem. Além disso, é claro, o grande vencedor da noite foi A Forma da Água, do mexicano Guillermo del Toro.
E aqui vai mais um número impressionante: nos últimos cinco anos, quatro dos vencedores de melhor diretor são mexicanos ¿ Alfonso Cuarón em 2014, Alejandro González-Iñárritu em 2015 e 2016 e, agora, del Toro. Notável também é o fato de que, em 2013, o prêmio havia ido para Ang Lee. Assim, nos últimos seis anos, Damien Chazelle foi o único diretor caucasiano e norte-americano a vencer nessa categoria.
Houve, ainda, a vitória de Viva ¿ A Vida é uma Festa na categoria de melhor animação. O filme da Pixar celebra a cultura mexicana, especialmente a tradição do Dia dos Mortos, e foi co-dirigido por Lee Unkrich ao lado do latino-americano Adrian Molina. Nos discursos da equipe do longa, que venceu também como melhor canção original, foi discutida a importância de celebrarmos a diversidade e a riqueza cultural do mundo em que vivemos e, também, o quanto precisamos de representação e de nos enxergarmos de forma positiva na mídia.
Já del Toro destacou sua condição de imigrante, anunciando que, para ele, ¿a melhor coisa que a nossa indústria faz é ajudar a apagar as linhas na areia quando o mundo parece querer reforçá-las.¿ Em A Forma da Água, vale destacar, é focado em personagens marginalizados e discute a opressão sofrida por quem ousa fugir do status quo, seja de maneira fantasiosa, por meio da criatura aquática por quem a protagonista (muda) se apaixona, seja de forma bastante real e ainda muito forte, como a maneira reclusa com que seu vizinho gay vive ou o preconceito sofrido por sua colega de trabalho e amiga, que é negra.
No ano passado, a Academia focou seus esforços em convidar novos membros que representassem diversos grupos dentro da indústria, tanto em questão de gênero quanto de idade, etnia, raça e nacionalidade. Este ano ¿ e, esperamos, nos próximos ¿, a medida já está dando frutos, mesmo que, é claro, ainda haja muito a ser feito. Agora, o que precisa ficar para trás é a vontade de se autoparabenizar a cada pequeno esforço feito para melhorar as coisas; muito mais importante é colocar a mão na massa e ampliar medidas concretas e discussões inclusivas sobre o que pode ser feito. Assim, quem sabe, possamos ter um dia mais de uma mulher incluída na categoria de melhor direção.