Código Preto | Um filme de espião diferente

É lógico que não é bom ficar gastando a palavra “gênio” por aí, mas também não deveríamos guardá-la a sete chaves todo o tempo. Steven Soderbergh não só é um dos diretores mais influentes de sua geração desde Sexo, Mentiras e Videotapes, como é sim um gênio. E o que um gênio faz de tão diferente? Simples, ele pega filmes como Código Preto e faz deles algo tão único que é difícil perceber o quanto ele poderia ser comum.

Depois de trabalhar com o roteirista experiente David Koepp em seus últimos dois filmes, Kimi e Presença, o diretor agora arranca desse texto tudo melhor que ele tem a seu dispor. Koepp tem uma carreira cheia de enormes bilheterias, assinando roteiros de filmes dirigidos por gente como David Fincher, Brian De Palma e Steven Spielberg, o que não o impediu de ter assinado bobagens como A Múmia (aquele do Tom Cruise) e Anjos e Demônios. Mas Código Preto é diferente de tudo isso e com Soderbergh formam a dupla perfeita para o material.

Koepp gosta daquela estrutura hollywoodiana com as reviravoltas e surpresas, Soderbergh adora pegar isso e transformar em algo íntimo e sutil. Um filme de espionagem como Código Preto, juntando essas duas peças se torna algo absolutamente incomum, que é o que o deixa melhor ainda.

Nele, Michael Fassbender é George, um espião de uma agência britânica que recebe uma missão ainda mais secreta de descobrir quem de uma lista de cinco parceiros seus é um traidor. Isso poderia ser um problema, já que o nome de sua esposa, Kathryn (Cate Blanchett), está entre eles, mas não é. George é uma mistura de espião perfeito, sem sentimentos e metódico, com alguém completamente apaixonado. Kathryn também, então o que poderia ser um filme de espião, também se torna uma trama sobre um casamente que dá muito certo, mesmo dentro de um emprego tão complexo quanto o dos dois.

Em certo momento de Código Preto, Soderbergh convida os espectadores para acompanhar um jantar à la Quem Tem Medo de Virginia Wolf, onde George usa aquela droga que faz todos falarem a verdade para que uma brincadeira nada inocente se torne um caos de acusações. E isso é só o começo, onde o diretor e o roteirista usam isso para apresentar todos personagens, suas personalidades e estabelecer aquela sensação de que todos podem ser culpados. O que vem depois é um labirinto onde o espectador acompanha o protagonista perdido entre suas impressões e desconfianças.

Tudo isso em clima absolutamente fino e impecável, mas com personagens que ultrapassam a linha de qualquer moralidade e parecem sempre estarem se atacando com diálogos tão cortantes que fazem mais machucados do que qualquer arma que poderiam usar. A verdade é que Koepp pensa em um grupo de personagens tão perto de serem odiados do lado de cá, que tudo vai ficando mais e mais confortável para que qualquer um seja o culpado e você fique feliz.

Aos poucos, Código Preto vai escalonando para um lugar emocionalmente violento, opressor e agressivo que todos os seis personagens em cena conseguem em certo momento estarem uns contra os outros. Mas isso logo passa para Kathryn e George, afinal eles são um casal perfeito.

A trama finge correr ao redor desse tal de Severus, um daqueles McGuffins deliciosos do cinema, e parece chegar em um perigo global, mas o espectador não se importa com isso, o que ele quer é ver esses personagens em cena agindo como se tivessem segredos que colocariam suas vidas em risco. Os conflitos então se vão rápido, com tudo extremamente bem costurado e focado no que interessa: os personagens.

Não só eles, como suas mentiras e seus comportamentos que parecem esconder suas intenções. De frente disso, Fassbender e Blanchett são dois lados de uma mesma moeda. Ele é frio e calculista, ela é relaxada e ainda mais calculista. A química dos dois é maravilhosa e deixa o filme ainda mais chique e competente, afinal os dois estão sempre irretocáveis e alinhados, olhando de cima para baixo para um mundo onde eles têm certeza que estão no topo da cadeia alimentar.

O momento onde Fassbender “perde” esse controle é sutil e até meio escondido por Soderbergh, mas é de uma capacidade corporal divertidamente criativa. O momento se dá na sala de reunião com o personagem vivido por Pierce Brosnam e é maravilhoso.

É isso que Soderbergh faz, em vez de quebrar o ritmo da cena com um plano detalhe mostrando o personagem tremendo e incomodado, o esconde no canto da tela, pois sabe que o próprio protagonista naquele momento quer passar despercebido. Soderbergh faz o comum ser extraordinário e, quase sempre, seu elenco vai junto com ele.

Enquanto Fassbender e Blanchett são espetaculares, Tom Burke, Marisa Abela, Regé-Jean Page e Naomie Harris seguram completamente bem a onda, com os dois primeiros se destacando muito diante de personagens que poderiam render pouco, mas que com eles, se destacam em cada cena. Principalmente Burke, que já vem há alguns anos galgando pela atenção de Hollywood sem medo de personagens pequenos, grandes, complexos ou divertidos (como em Furiosa ou Coisas Verdadeiras, por exemplo).

Mas para que tudo isso funcione tão bem depois de juntar e quebrar seus personagens, a impressão que fica é que Soderbergh e Koepp querem um filme de espionagem para chamar de seus, mas com um clima diferente, muito mais Agatha Christie do que 007. Muito mais sobre personagens que o espectador não consegue identificar em termos de índole e intenções do que sobre uma trama clássica onde o mundo está em perigo. Na verdade ele até chega a estar em perigo, mas a intenção é ser anticlimático e isso se resolve tão rapidamente que o espectador logo lembra que Código Preto é sobre mentiras e sobre o amor desse casal. Nas necessariamente nessa ordem.

É isso que os gênios fazem: torna muito maiores filmes que poderiam ser só uma coisa. Então na hora de “gastar” o termo, é melhor que a gente faça com quem merece, e Steven Soderbergh mostra mais uma vez, agora em Código Preto, que merece.


“Black Bag” (EUA, 2025); escrito por David Koepp; dirigido por Steven Soderbergh; com Michael Fassbender, Cate Blanchett, Gustaf Skarsgard, Tom Burke, Maria Abela, Regé-Jean Page e Naomie Harris


Trailer do Filme – Código Preto

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