Um dia talvez a gente vá ter a impressão de que todo filme sobre a pandemia do Coronavírus comece com uma tomada aérea mostrando alguma cidade vazia. Coronation, muito provavelmente o primeiro documentário sobre o assunto, já faz isso em seu começo. E a imagem é aterradora.
O filme é dirigido pelo artista e ativista Ai Weiwei, mas as críticas aqui parecem não vir ao caso, talvez um pouquinho aqui e ali, mas o importante em Coronation é o retrato nu e cru dessa China fantasma que abre essa experiência.
Weiwei não parece ter um foco específico, mas sim apenas a busca por essas pequenas peças que formam um mosaico que encara o lockdown em Wuhan, mais conhecida como cidade onde houve o primeiro caso de Covid-19. O filme não tem uma narrativa, apenas acompanha esses personagens. O resultado pode até ser meio chato em alguns momentos, mas é tremendamente eficiente enquanto cria essa imagem ampla da cidade.
Portanto, a maior qualidade do trabalho de Weiwei é estar presente. Sua câmera acompanha esse homem entrando na cidade, passa pelas barreiras e cria essa impressão de vazio, não existe ninguém na estrada, nem no restaurante, somente no pedágio, onde passa por uma série de questionamentos e testes. Entrar em Wuhan é quase tão difícil quanto sair dela, como mais tarde um outro personagem descobre.
Mas o que parece aleatório aos poucos começa a tomar forma. Weiwei está interessado na vida. Está interessado em quem continuou trabalhando durante a epidemia, do médico ao entregador.
As cenas dentro do hospital são viscerais, os pacientes entubados são uma realidade triste, ao mesmo tempo que a batalha travada pelos médicos é poderosa e cheia de esperança. A câmera encara esses profissionais com o heroísmo que suas ações merecem, acompanha a chegada de um deles enquanto esse percorre um imenso corredor em um dos hospitais de campanha construídos na cidade. Quanto mais tempo fica com esse médico, mais o espectador vai sendo tomado pelo desespero por trás daquelas paredes desenhadas.
O filme tenta resumir um pedaço do dia daquele médico, do tempo vestindo o monte de proteções até o tempo maior ainda que demora tirando tudo aquilo apenas para conseguir almoçar, sozinho, em uma sala que deve ficar por trás de uma daquelas paredes que ele percorreu. A vida nesse distanciamento se apagou por trás das portas fechadas.
Weiwei ainda tem tempo de crescer com seu filme em direção à esperança. Acompanha um entregador, depois uma equipe de higienização das ruas. No meio disso deixa sua câmera isolada com um idosa ex-líder do Partido Comunista e seu filho adulto, nesse momento, tem a oportunidade de lidar com a crítica política que é mais ligada ao seu trabalho, mas ao mesmo tempo se diverte com o resultado dessa sabedoria dos pensamentos da velha senhora.
No final, tenta criar um filme mais solar. Olha para o fim do lockdown, mas não desvia o olhar do, ao mesmo tempo poético e dolorosamente pragmático, processo de preparação de entrega das cinzas dos falecidos. Alguma entregas depois, diante de uma pausa, os dois funcionários passam um pano sobre a mesa como se tentassem tirar um resto de poeira e espirram álcool em gel enquanto a vida continua para aqueles que terão a oportunidade de se despedir dos parentes que se foram.
Coronation tenta montar o dia-a-dia de um dos maiores focos de covid-19 do mundo. Enxerga quem passou por isso, quem lutou pelas pessoas, quem possibilitou que muitos sobrevivessem e quem ficou apenas com a lembrança das perdas. O documentário começa com as ruas vazias olhando lá do alto, mas acaba com sua câmera encostada no chão observando duas pessoas caminhando por uma rua ainda meio vazia, mas agora mais próxima dessa normalidade que teve que ser interrompida.
“Coronation” (Chn, 2020); dirigido por Weiwei Ai
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