A grande verdade é que todos que torcem o nariz para Rocky e seu Oscar (1976), o fazem muito mais por não conseguirem se desvincilhar de suas inumeráveis sequencias, do que pelo filme em si. John G. Avildsen não só ganhou o Oscar de Melhor Diretor, como definiu grande parte do que o gênero viria a explorar até hoje (até se “autofagiando” em Karate Kid). E talvez desde lá que ninguém tenha entendido muito bem o que fazer com isso antes do jovem Ryan Googler “pisar em um ringue” com seu Creed: Nascido para Lutar.
Esqueçam todas sequências (ainda que Rocky II e Rocky III, tenham lá seus acertos), repetições e cópias, Creed é, provavelmente, quem melhor entendeu o boxe desde O Touro Indomável (de 1980) e, obviamente, de Rocky (de 1976). De ambos, um filme que percebe que mais do que de grandes lutas, o gênero precisa de personagens maiores ainda e uma história que saia dos ringues. De combates que não precisem de luvas para serem lutados.
Como o próprio nome sugestiona, Creed é uma continuação da franquia de Silvester Stallone, mas na verdade segue o rumo do Apollo ¿Doutrinador¿ (Creed em inglês), adversário de Rocky nos dois primeiros filmes e treinador no terceiro. Mais precisamente de um filho fora do casamento, Adonis, que não herda apenas o nome mitológico, mas a gana por calçar as luvas e entrar no ringue. Mas seu maior legado, seu nome, é talvez seu maior inimigo, restando então para ele que saia de Los Angeles e vá até a Philladelphia procurar um “velho amigo da família” e convencê-lo a se tornar seu treinador.
Em linhas gerais, Ryan Coogler e Aaron Covington escrevem um roteiro que busca inspiração, justamente, no filme de 1976, sobre um cara que só quer lutar, mas que acaba com um desafio muito maior do que ele imaginaria. E o grande acerto da dupla é ir em busca de novas motivações e uma série de arcos que se sustentam sem precisar de um climax ou reviravolta. Coogler e Covington apenas procuram escrever uma boa história.
¿Uma boa história¿ que sabe que precisa ser uma jornada e não apenas uma luta no final. Creed então tem uma agilidade que não se vê muito no gênero (que quase sempre é estabanado e apressado), resolve cada problemática com uma inteligência incrível e constrói uma história forte, emocionante e sensível. É lógico que no final das contas é fácil imaginar que tudo culminará em algum tipo de azarão contra o campeão, mas antes disso, ¿Donnie¿ e Rocky precisam “lutar algumas lutas”. Sem nenhuma delas sendo refém desse desafio final, apenas preocupadas com o próximo passo dos personagens.
Não existe a necessidade de focar em um horizonte maior antes de resolver pequenos problemas da vida desse jovem com um sonho. Ao mesmo tempo que Rocky não entra na trama para treinar um campeão, mas sim para cuidar de alguém que ele encara como família. Do mesmo jeito que o embate contra sua doença é tão bem tratado, que só serve para engrandecer e aprofundar ainda mais os personagens, e não qualquer tipo de reviravolta melodramática (assim como a deficiência aditiva do interesse amoroso do protagonista).
E se você pensou que essa citação a uma doença é um spoiler, pode acreditar, não é. Não porque o filme seja recheado de ¿dicas¿ (tossidas, tonturas etc… coisa que não acontece), mas sim, pois Coogler trata isso com uma sensibilidade tão grande que é impossível não encarar isso. Tudo se torna então uma pequena barreira, e não um inimigo mortal. Não existe nada que te faça adivinhar o que vai acontecer, e quando acontece, tudo é solucionado de modo tão são e sensato que fará o espectador ter raiva de todas outras vezes que o cinema usou uma doença como desculpa para mover um personagem. Em poucos minutos e duas ou três cenas, tudo que foi dito diante da raiva é resolvido com uma conversa. Do jeito que seres humanos fazem.
Uma sensibilidade estética e narrativa que volta àquela citação de Martin Scorsese alguns parágrafos atrás. Do diretor de Touro Indomável, Coogler não só cita o mesmo filme ao deixar tudo em volta do ringue sumir em um breu que separa o personagem do mundo ao redor, como se inspira em Scorsese para acompanhar Adonis por corredores até observá-lo em um luta sem cortes. Uma vontade de inovar que o leva a acompanhar uma outra luta em meio aos boxeadores, numa dança de violência inspiradora e que deve servir de divisor de águas para o gênero. Três subidas ao ringue, mas três momentos tão dispares, emocionantes e inesquecíveis que já podem ser considerados entre os melhores da franquia. Tanto dessa, quanto de mais um monte de outras franquias.
Coogler ainda tem uma habilidade enorme para lidar com seus atores. Stallone talvez tenha em mãos seu maior e mais complexo trabalho, e o que ele faz com isso é incrível e digno de uma estrela muito maior que sua carreira pouco levada a sério. Seu Rocky é profundo, melancólico, humano e dá uma vida incrível ao filme, assim como serve de parceiro ideal para o Adonis de Michael B. Jordan. Mesmo Jordan que já tinha feito uma dupla perfeita com Coogler no incrível Fruitivale Station, que passou despercebido pelo Brasil, mas é imperdível.
Um diretor que tem a sensibilidade de compor seu protagonista de modo sutil e complexo enquanto já descalça as luvas antes mesmo de seus adversário chegar no final da contagem, ao mesmo tempo que o coloca em um briga com sua própria humildade, seu passado e sua vontade de vencer com suas próprias forças.
Creed então é tanto um veículo para Coogler alcançar voos muito maiores e merecidos (sua ausência nas premiações do cinema é uma enorme cegueira!), mas também um filme que fala sobre um legado, e mostra que, mais do que nunca, o filme de 1976 merecia toda e qualquer premiação. Assim como esse, que seria merecedor de qualquer homenagem.
“Creed”(EUA, 2015), escrito por Ryan Coogler e Aaron Covington, dirigido por Ryan Coogler, com Michael B. Jordan, Sylvester Stallone, Tessa Thompson, Phylicia Rashad, Tony Bellew e Ritchie Coster.