Um pouco brilhante, um pouco má e um pouco louca. É assim que a Cruella de Emma Stone se define em certo momento do filme homônimo, que conta a história de origem da vilã do clássico 101 Dálmatas — e todo o marketing do filme trabalha em cima dessas três palavras. Assim, é ótimo perceber que o longa faz jus à protagonista e que, apesar da moralidade da Disney, consegue fazer de Cruella uma mulher realmente… cruel.
Aliás, um dos grandes acertos dos roteiristas Tony McNamara e Dana Fox é estabelecer a pequena Estella, nome de batismo da protagonista, como uma garotinha com requintes de maldade desde a infância — os eventos traumáticos que virão depois, dessa forma, surgem mais como gatilhos do que sempre esteve no cerne de Cruella do que como “explicações” para sua vilania.
Mas os eventos traumáticos acontecem, sim: depois da morte da mãe, a pequena Estella se vê sozinha pelas ruas de Londres e, ao lado de seus novos amigos Horace (Paul Walter Hauser) e Jasper (Joel Fry) e dos cãezinhos Buddy e Wink, aprende a cometer os mais diversos roubos e golpes para se virar na cidade. Estella (Emma Stone) usa seus grandes talento e paixão para a moda para criar os disfarces do grupo, mas nutre o sonho de se tornar uma renomada estilista. Depois de conseguir um emprego de faxineira em uma conceituada loja de roupas femininas, Estella acaba chamando a atenção da Baronesa (Emma Thompson), que a contrata para trabalhar em sua renomada grife. Porém, a descoberta de um segredo que conecta o passado de Estella à Baronesa fará com que a jovem decida destruí-la.
E essas tentativas de destruição da oponente de Cruella são deslumbrantes — a estatueta de melhor figurino do próximo Oscar já deve estar com o nome de Jenny Beavan, que cria “looks” estonteantes que brilham em cada cena do longa, com destaque para os momentos em que os designs criados por Cruella que têm justamente a função de causar.
É divertidíssimo assistir aos embates entre as duas Emmas — ambas constroem brilhantemente suas personagens, abraçando o lado camp de Cruella com maestria. Enquanto Stone passeia confortavelmente pelas duas versões de sua personagem — a Estella que esconde sua crueldade e a Cruella que se deleita na maldade e no exagero —, Thompson entende perfeitamente que, para que a Baronesa funcione como vilã de um filme que já é protagonizado por uma vilã, sua personagem precisa ser o ápice da maldade e da frieza.
O diretor Craig Gillespie já havia mostrado, em Eu, Tonya, que consegue conduzir de forma brilhante a história de uma mulher complicada, fazendo com que criemos simpatia pela protagonista sem precisar aparar as arestas de seus defeitos. Isso faz dele uma excelente escolha para conduzir Cruella: ambas as obras têm em comum também o dinamismo com que contam suas histórias. Dinamismo esse que torna-se ainda mais livre na produção da Disney, graças às origens cartunescas que o longa faz questão de exaltar e do vibrante contexto da Londres dos anos 70 (a trilha sonora é fundamental para dar o tom do filme).
Ao lado dos roteiristas McNamara (do brilhante A Favorita) e Fox, a trama consegue contornar até mesmo o principal obstáculo de um live-action da Disney que conta as origens de Cruella: na Disney atual, simplesmente não há espaço para uma vilã que mata filhotinhos para fazer casacos de pele. A moralidade de hoje do estúdio é mais suave, especialmente no cinema live-action. Esta Cruella é uma anti-heroína com toques de vilania, uma mulher capaz de qualquer coisa para cumprir seus objetivos e que se entrega sem pudores à sua ambição — mas ainda é uma vilã da Disney de 2021.
Portanto, é difícil imaginar a Cruella de Emma Stone tornando-se a Cruella do desenho animado de 1961. Felizmente, esta produção abraça seu papel de quase reboot, e não de prequel, e dá amplo espaço para que histórias futuras dessa Cruella sejam contadas — para isso, inclui até mesmo alguns elementos-chave do filme de 61 de forma bastante inesperada (repare nas funções cumpridas por Roger e Anita e nos presentes que cada um deles recebe no final do filme).
Repleto de energia durante todas as suas 2h30 de duração, Cruella abraça o glamour sujo e a ambição descontrolada de sua protagonista e acerta por não se prender às amarras do estúdio ou ao clássico que a originou: este é um filme dono de uma imensa personalidade própria.
“Cruella” (EUA, UK, 2021); escrito por Tony McNamara e Dana Fox; dirigido por Craig Gillespie; com Emma Stone; Emma Thompson, Joel Fry, Paul Walter Hauser, Mark Strong, Kayvan Novak, Kirby Howell-Baptiste e John McCrea