David Lynch: A Vida de Um Artista começa com uma cena do próprio diretor de Coração Selvagem sentado em uma poltrona em meio a uma bagunçada oficina. Na sua mão, um cigarro e no resto aquela mesma áurea intrigante que suas obras têm. É impossível saber o que se passa na cabeça de Lynch, e se você descobrir, talvez não entenda.
E o documentário dirigido por Jon Ngyuen, Rick Barnes e Olivia Neergaard-Holm tenta exatamente isso. Não que consiga, e em alguns momentos até embaralha ainda mais o entendimento, mas pelo menos o que ele faz com segurança e paixão é deixar que seu personagem principal mostre seu mundo.
A Vida de Um Artista é então uma fluxo de pensamentos e imagens que nunca parece simplesmente jogado, mas sim que segue o ritmo cheio de personalidade do artista plástico que mais tarde se tornou um dos maiores diretores de cinema de sua geração. E ainda que o cineasta não esteja em questão, é fácil através de sua linha de raciocínio entender onde cada coisa pode levar.
O filme entrega para a Lynch a responsabilidade de costurar as imagens de seus trabalhos e uma câmera sempre em busca de seu processo de criação, com uma narração onde ele conta sua infância, juventude e fase adulta. Cada impressão, sentimento, mudança e detalhe que aos poucos foi criando esse artista enigmático e onírico.
E falando em sonhos, algo recorrente em suas obras no cinema, é incrível perceber como Lynch trata de suas memórias como se tecidas na mesma fábrica de seus sonhos. Não algo que se liga em uma narrativa, mas sim cenas que poderiam ter saído da noite de sono de alguém, talvez, no caso, dele mesmo. Em certo momento uma mulher nua passa por ele e seu amigo ainda crianças e o resultado é algo perturbador mesmo diante da simplicidade.
Essa esquisitice funciona melhor ainda diante da decisão dos diretores de separar os quatro pilares do filme e nunca deixarem eles se encontrarem. Em um ponto, a narração de Lynch; no outro, sua imagem em meio a ferramentas, sempre calado; num terceiro, suas obras; por fim imagens de arquivo e fotos antigas. Tudo se mistura em um mosaico de sentidos. Uma contradição que agrega camadas de sentimento.
Uma de suas lembranças passa por uma mudança de cidade, mas enquanto trabalha uma tela saída de algum pesadelo, imagens de sua infância posicionam o espectador. Aos poucos vai se desenhando uma árvore em outra tela enquanto sua história passa por um momento onde seu vizinho fez algo em uma árvore que ele não consegue repetir. A sequência acaba olhando para um Lynch perdido em seu olhar. Tudo captado em momentos separados, mas juntados de modo tão perfeito que é impossível não continuar no resto do filme se perguntando o que aconteceu com o tal Sr. Smith.
Talvez o que tenha acontecido com o Sr. Smith não esteja claramente no filme, mas está lá, no modo como Lynch vê naquilo a despedida de um tempo onde seus sonhos tinham menos cara de pesadelos. E se você está perdido lendo isso, não se preocupe, o Sr. Smith não vai sair de sua cabeça depois do filme, assim como ele não saiu da minha.
Mas talvez o mais impressionante é como a mente de Lynch funciona. Seus pensamentos são ao mesmo tempo dispersos, mas por outro lado precisos e diretos. Assim como suas pinturas, é preciso tentar encontrar um rumo nelas e a partir dai seguir esse fio. O significado está lá, escondido junto do sentimento de estar vendo aquilo.
E talvez David Lynch: A Vida de Um Artista, assim como toda cinebiografia do diretor e suas pinturas, o documentário seja algo para ser sentido, desvendados com os poucos detalhes que têm em mãos. Um convite a um mergulho desse mar de ideias, conceitos e impressões.
Como nada é fácil quando leva a assinatura de Lynch, um documentário sobre sua vida não poderia tomar um outro rumo e o resultado é uma experiência sensorial única, assim como um trabalho de seu personagem central.
“David Lynch: The Arte of Life” (EUA/Den, 2016), dirigido por Jon Nguyen, Rick Barnes e Olivia Neergaard-Holm, com David Lynch