[dropcap]P[/dropcap]arece haver infinitas maneiras de abordar o tema dos refugiados e terrorismo de nossos tempos. Isso já deixou de ser novidade há mais de uma década, mas agora está sendo usado à exaustão pelas artes e pela mídia. Encontraram o filão dramático que precisavam no momento certo, quando faltam pobres até na China para que as artes se aproveitem daquela miséria lírica tão bem explorada no século passado. E eis que surge Doce Entardecer na Toscana, um trabalho fantasioso e de interpretação aberta cujo objetivo mais nobre é fazer pensar, e o menos nobre é não saber exatamente sobre o quê.
Seu núcleo dramático gira em torno de Maria Linde, poetisa ganhadora do prêmio Nobel e que está prestes a receber um outro prêmio na cidadezinha da Itália onde se estabeleceu após a imigração causada pelo antisemitismo e pelo comunismo. Ela é a matriarca da família, já é avó e repete mais vezes que o necessário o quanto seu corpo é velho. Comenta mais sobre isso quando está pensando em seu amante, um lindo (e jovem) egípcio. Ah, a paixão dos imigrantes de diferentes gerações…
O motivo pelo qual Linde fugiu da Polônia é inversamente proporcional ao motivo de seu amante. Enquanto ela foge para sobreviver de um sistema desumano e abjeto, ele saiu do país porque… bem, estava em busca de novos ares. E de italianas matronas ganhadoras do Nobel de literatura.
É importante notar a diferença de perspectiva de todos os personagens deste filme que impacta mesmo sem entendermos muito bem por quê. Estamos falando de uma família com avó, avô, mãe solteira e um casal de filhos, uma quase adolescente e um caçula ainda bambino. E cada uma dessas pessoas, exceto o bambino, que não tem idade para isso, está em uma fase distinta da vida, o que altera radicalmente as percepções da sociedade em que vivem. Enquanto o marido, caseiro, está alheio a tudo que a cidade grande exagera, sua filha, que mora em Roma, é esse exagero dramático do filme. E a poetisa, que pode estar à beira da senilidade, sobretudo mental, aproveita para entrar no modo “me processa”, dizendo e fazendo o que quiser em público porque qualquer processo jurídico que incorra contra sua pessoa tende a ter a vida mais longa do que os anos de vida que lhe restam.
E enquanto esses adultos tentam manter uma unidade familiar apesar de tantas diferenças em como enxergam o mundo, a neta descobre através da nonna um cantor chamado Frank Sinatra. E as esporádicas músicas de “Doce Entardecer” são efusivas, ultrapassam a comunicação verbal indo direto para o coração. Que época maravilhosa, tecnológica e permissiva que vivemos. É impressionante como mesmo vivendo pequenos milagres no dia-a-dia muitos ainda se prendem na televisão, na mídia, e se preocupam com questões alheias à sua vida como terrorismo e refugiados.
Alheias para muitos, a maioria, esses assuntos poderiam ser. Menos para escritores. E Maria Linde sente que precisa se expressar sobre isso. É sua responsabilidade. Porém, ela o faz na mais pura das inocências: considera seus ouvintes e leitores como iguais, capazes até mesmo de interpretar suas palavras sobre terrorismo, logo após um atentado em Roma, de maneira racional. Maria pode não ter medo do que diz, mas o resto do mundo responde de maneira reativa, automática e agressiva. E isso já diz mais sobre o mundo em que vivemos do que qualquer palavra jamais dirá.
A atriz Krystyna Janda é quem interpreta a poetisa e entrega a ela um desprendimento das tensões sociais que é admirável e desejável em qualquer ser humano decente. Ela toma café no cais e cheira os peixes recém-capturados pelos pescadores logo após o crepúsculo, quando o filme inicia. Cumprimentando-os, um deles exclama “finalmente o sol chegou!”. Ele se refere tanto ao sol quanto à imagem de uma bella donna caminhando pelo cais. É simples e tocante, porque não existem controvérsias e o sol acabou de nascer. Apenas um café matinal entre seres humanos decentes.
Virando o filme do avesso, o que se segue é um longo e tortuoso entardecer. Não um entardecer literal, o sol se pondo, mas a escuridão metafórica que a sociedade vive. É o anti-iluminismo, quando as pessoas param de pensar. O diretor Jacek Borcuch capta esse sentimento de maneira visual, e com a ajuda de seu fotógrafo, Michal Dymek, realiza tomadas que lembram filmes do Terrence Malick, mas apenas se Malick estivesse em depressão depois de tomar um café com Lars von Trier.
São cenas escuras, drenadas de beleza. Deveriam estar jorradas de grãos mais brutos, mas nossos olhos não estão acostumados a ver tanta feiúra de uma só vez. Então Dymek coloca a sua câmera na mão, alucinada e ao mesmo tempo mesmerizada. É o sentimento de urgência, de quem acredita ser este o apocalipse. Não quer dizer com isso que são cenas rápidas, mas apenas o efeito psicológico sufocante entre a falta de luz e os enquadramentos ligeiramente defeituosos, cambaleantes.
O mais triste de Doce Entardecer… é que muitos espectadores sairão da sala de cinema ainda sem entender por que a poetisa disse aquelas palavras. Claro que eles não são ignorantes: estão cientes das consequências que aquelas palavras podem ter no mundo globalizado. Mas ao mesmo tempo eles inconscientemente zelam pela estabilidade do status quo. E não percebem que artistas existem para derrubar muros e construir pontes. Agora imagine um mundo onde pessoas como Maria Linde sejam tratadas como na última cena, e entenderá até onde tudo isso pode chegar.
“Dolce Fine Giornata” (Pol, 2019), escrito por Jacek Borcuch, Marcin Cecko e Szczepan Twardoch, dirigido por Jacek Borcuch, com Krystyna Janda, Kasia Smutniak e Antonio Catania.