[dropcap]É[/dropcap] muito fácil tirar sarro da caricatura da burguesia, com sua gente alienada e auto-centrada no próprio umbigo e propriedades. Difícil é, além de tirar sarro, manter o realismo para que os personagens próprios não virem eles próprios caricaturas. Domingo, é trabalho conjunto de dois diretores, Fellipe Barbosa e Clara Linhart, seguindo o ambicioso roteiro de Lucas Paraizo, consegue realizar isso e ainda mantém várias bolas no ar, dando conta de diversos personagens enquanto tece sutilmente sua crítica social.
A história gira, como o próprio nome diz, em um dia de domingo com a família. Aquele velho churrasco no sítio. Mas não é apenas um dia comum, mas a posse do novo presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, no primeiro dia de 2003. Mas ninguém liga e faz piada ou descaso; estão todos preocupados com a própria vida e os conflitos familiares que surgem à tona. Exceto a empregada “consciente” (pobres também podem ter caricaturas) que assiste pela televisão à posse. A alienação é demonstrada quando a grande massa burguesa nem sabe que é domingo e confunde com sábado (observação relevante: essa é apenas uma obra de ficção; o dia primeiro de janeiro de 2003 na verdade foi uma quarta-feira).
O filme consegue reunir todos os tipos de personagens de todas as gerações em uma família burguesa típica e ainda dar tempo de tela para todos os conflitos. A maneira com que os realizadores fizeram isso foi mostrando múltiplas ações no mesmo espaço. Enquanto acompanhamos o conflito principal ocorrendo entre as vozes que falam mais alto, no fundo ou no lado também observamos conflitos secundários, terciários. Tudo ocupa o mesmo quadro e depende do espectador prestar atenção em um conflito principal que se inicia, por exemplo, em um carro quase partindo do sítio e que termina sutilmente ao fundo de uma mesa que discute outro assunto.
Domingo está a todo tempo mostrando ação simultânea não apenas como uma sacada genial narrativa, mas também pelo próprio realismo da vida, já que dificilmente as coisas na vida real acontecem uma a uma em fila. Quando a família se reúne são várias conversinhas paralelas rolando.
É até difícil elencar qual delas é mais importante, pois todas recebem igual atenção e todas se relacionam. O roteiro de Fellipe Barbosa inteligentemente decide não ser esperto demais ao abrir e fechar pequenos arcos dramáticos, preferindo deixá-los evoluir organicamente e terminar como geralmente terminamos as desavenças: com o próximo evento ocorrendo e chamando a atenção dos demais.
A não ser nos assuntos centrais que o filme parece querer discutir com mais reverência, como a já citada posse do presidente, os diversos casos de luxúria dentro da família envolvendo traição e a questão primordial da propriedade, pilar principal com que a atriz Ítala Nandi e sua matriarca Laura seguram a performance absolutamente magistral de uma mulher que tenta controlar a tudo e a todos da maneira com que sempre agiu, dando ordens ou cutucando feridas, além dos conselhos de avó sempre inapropriados e que revelam claramente um desejo oculto de poder. Se torna até icônico o breve momento em que ela começa a observar o discurso do novo presidente, como se finalmente estivesse olhando para alguém de igual para igual.
E ainda no campo das atuações será preciso elogiar a maneira completamente tresloucada e ao mesmo tempo realista com que a talentosíssima Camila Morgado vive sua Bete, uma mulher casada com um homem dessa família do Sul e que sempre é colocada à margem, e que por isso mesmo entendemos sua postura anárquica e hedonista, pois é sua única escapatória para manter a pouca sanidade que parece exibir.
Os diretores estiveram à frente da tela antes do início da última projeção da Mostra para falar sobre a ironia que ocorre neste momento. Eles dizem que naquela época muitos temiam uma ditadura comunista e eram obviamente motivo de piada pelo resto da população. Agora “eles” (imagino que a esquerda) se sentem da mesma maneira, sendo alvos de escárnio por temerem um movimento de extrema direita vinda da vitória de Jair Bolsonaro na presidência.
O diretor, Fellipe Barbosa, captou com perfeição a ironia. Mas ao terminar sua introdução ao filme, ao manter um semblante e um tom sério demais para a ocasião, parece ter falhado miseravelmente em entender o sarcasmo. E isso, pessoalmente, eu acho muito mais revelador que a belíssima ficção que eles desenvolveram.
“Domingo” (Bra/Fra, 2018), escrito por Lucas Paraizo, dirigido por Fellipe Barbosa, Clara Linhart, com Ismael Caneppele, Augusto Madeira, Camila Morgado, Ítala Nandi, Martha Nowill, Silvana Silvia, Chay Suede, Clemente Viscaino e Michael Wahrmann.