Dunkirk é um considerável esforço técnico. São tiros disparados, bombas explodindo e hélices se mexendo a todo vapor, conduzidos com um naturalismo impressionante e uma trilha sonora soberba, no sentido mais pretensioso da palavra. O resultado é uma imersão realista sobre um evento histórico que parece trazer muito mais euforia e catarse do que melancolia pelas misérias da guerra.
Isso deve acontecer porque o filme vai construindo um certo senso patriótico em seu lado mais singelo, o humanismo, como se esquecesse que foi o nacionalismo exacerbado justamente o responsável pelas piores guerras. Além disso, mostra também o lado mais egoísta do ser humano na busca pela sobrevivência, onde não há culpados e onde a moral é frouxa. Esse retrato é traçado cuidadosamente do indivíduo para o coletivo, e a história por trás de tudo aquilo que está acontecendo, e por que acontece daquela maneira.
E o que mais surpreendente na “estratégia de guerra” de Dunkirk, que conta com várias unidades de direção e muitos (mas muitos!) extras, é que ele não se importa em explicar de maneira linear tudo o que acontece naquela praia para seu espectador. Vamos acompanhando desorientados evento após evento, assim como os soldados se acumulam, tentando evitar os corpos. Os pontos são ligados pelos espectadores, auxiliados por um ou outro diálogo traçando tanto o panorama tático (como a conversa dos pilotos de caça), estratégico (a conversa dos oficiais) e temático (o barco dos civis).
Debaixo da poeira levantada pelos incessantes bombardeios do inimigo, e por trás de cada olhar desesperado em busca de salvação, o que fica claro é que este é um senhor espetáculo, filmado para ser clássico, épico e um registro histórico mais fiel possível.
É claro que há uma narrativa, mas ela está sempre a serviço de capturar os valores de todos os envolvidos, e que por tabela parece capturar o moral do mundo civilizado naquela sombria época. Há a tentativa de humanizar o filme na figura de alguns personagens, que são os que acompanhamos durante o filme, mas nunca temos a certeza de que eles não serão as próximas vítimas. Acuados na praia, a diferença entre a vida e a morte é pura sorte. Como na vida real, e principalmente em uma guerra real.
E por falar em guerra real, poucos filme tentam capturar o espírito da guerra sem exageradas dramatizações. A maioria se preocupa em retratar apenas os seus horrores, em um movimento uníssono e anti-bélico. Este parece entender que uma guerra, por mais teatral que seja, não precisa ser retratada em um palco, com atores imortalizando seus dramas. Este é um evento comum e o retratado no filme relativamente recente da humanidade. A Operação Dínamo foi o momento de maior peso na Europa durante a Segunda Guerra, com a Alemanha derrotando a França e o exército britânico, aliado, acuado. Isso ocorreu em um espaço de tempo menor que 100 anos; as gerações não se esqueceram. É de se supor que seus participantes fossem tão humanos quanto nós.
O curioso é que o resultado, e em especial as filmagens em 70mm, acaba inserindo o espectador em uma posição privilegiada e aterradora. Filmado com geralmente o dobro da resolução possível em um filme (e pelo menos em algumas cenas isso é perceptível), acompanhamos o resgate de centenas de milhares de soldados, por terra, mar e ar, em uma mescla de diferentes tempos e situações que se acumulam e se unem aos poucos por um objetivo comum. Este não é um filme que apresente elementos narrativos clássicos como o clímax, o arco dramático, etc. Ele é quase um documentário ficcional realizado com perfeccionismo de detalhes.
Para intensificar nossa identificação com seus personagens, o filme constantemente nos coloca sob seu ponto de vista, em uma câmera que os seguem, por trás (a chamada câmera subjetiva). Isso dá a real noção de como é passar carregando uma maca no meio de um corredor de centenas de soldados, ou de realizar manobras aéreas para acertar um caça inimigo acompanhando ao mesmo tempo quanto combustível resta anotado em giz no painel, ou até mesmo o sufocante momento onde um torpedo afunda um navio cheio de sobreviventes, e ao tombar o mar é visto como uma parede de água a esmagar seus tripulantes.
Dunkirk tem uma imensa vantagem técnica também em seu design de som e trilha sonora. Cada tiro, explosão e cena aérea contém separadamente todos os sons que seriam possíveis ouvir em uma situação real. Dessa forma, uma guinada de um caça é sentida pelo barulho do vento no cockpit, e talvez pela primeira vez faça sentido sua poltrona no cinema tremer, ainda que um pouco. Os poucos tiros secos são sentidos em eco, e até o cair do cartucho no chão é assustador. Mas nada disso teria muita eficiência se não fosse conduzido pelas músicas de Hans Zimmer, que dessa vez não precisa se conter (como se ele se importasse…), e apesar de usar tons já marcados de seus outros trabalhos (A Origem, O Cavaleiro das Trevas), realiza aqui um momento único de introspecção. Este é um espetáculo, como eu avisei, mas é sobre mortes, sobre sangue derramado, e Zimmer tem a ousadia (ou “culhão” mesmo!) de conduzir seus eventos de forma a potencializar as cenas com seus acordes distorcidos, ritmados e frenéticos. Isso, para na outra ponta suavizar com um certo respeito, quase uma veneração, por todas as vidas que não foram poupadas e por todo o sofrimento humano ali imortalizado.
Junto aos aspectos técnicos temos o costumeiro editor de Nolan, Lee Smith, que consegue desorientar o espectador até o limite do aceitável para só então nos trazer de volta à ação. Os planos mais específicos, como a visão de diferentes personagens do mesmo evento, por mar, terra e ar, só ganham significado quando vemos os planos mais gerais, em uma tomada aérea que dê proporção e localização ao espectador. A competência de Lee Smith está em conseguir harmonizar esses planos com uma coerência invejável.
E tudo o que vemos não poderia ser melhor fotografado por Hoyte Van Hoytema (do filme Ela), pois as cores do filme conseguem não apenas evocar o realismo, mas sugerir as fotos colorizadas daquela época, além de conseguir harmonizar cenas noturnas com o reflexo do sol no mar, que é usado em exagero, é verdade… mas, oras, que pôr-do-sol!
E por falar em exageros, eles praticamente não existem nas atuações, o que pode dar a falsa impressão deste não ser um trabalho relevante dos atores, o que é uma completa injustiça com a forma econômica com que conduzem seus personagens, nenhum atraindo muita atenção para si mesmo. Enquanto Fionn Whitehead vive o soldado inglês comum e mostra o quanto é uma escolha acertada usar um ator estreante, Tom Hardy exibe seu carisma como um piloto de caça sem tentar magnetizar o espectador em torno de si, trabalhando em busca de empatia com sua situação, sozinho, sem o uso de muitas palavras. Faltam palavras também para Mark Rylance, como o civil comum a serviço do seu país, pois sua postura e expressões (é dele o melhor momento do longa), aliadas com seus comentários certeiros a respeito dos caças que sobrevoam seu barco, já dizem muito mais sobre sua persona do que qualquer diálogo expositivo. As palavras mais sagazes, portanto, ficam por conta de Kenneth Branagh como um oficial da marinha que traduz as ordens superiores de uma maneira eloquente e sucinta.
Dunkirk aos poucos se configura como o trabalho mais maduro de Christopher Nolan, que o roteiriza e dirige controlando seus excessos narrativos e sua mão pesada de Cavaleiro das Trevas enquanto diminui seus problemas em desenvolver personagens (Interestelar, A Origem) simplesmente não os utilizando para este fim. Nolan parece ser o ímã que atrai talentos para seus projetos e os coordena em um esquema que garante momentos icônicos para o cinema.
Resta saber se a pretensão de um filme de guerra ultrarrealista que se configura como clássico irá envelhecer como um clássico. E isso só saberemos depois que sua importante mensagem sobre os resultados trágicos do fanatismo seja absorvida pela situação atual na Europa e no resto do mundo. Torçamos para que a guerra não seja vista como inevitável, mas como um alerta do passado sobre o que não fazer novamente com o mundo no futuro.
“Dunkirk” (RU/Hol/Fra/EUA, 2017), escrito e dirigido por Christopher Nolan, com Fionn Whitehead, Damien Bonnard, Aneurin Barnard, Lee Armstrong, Tom Hardy, Kenneth Branagh, James Bloor e Mark Rylance.