O cineasta Xavier Dolan é intenso e leva tudo do seu lado pessoal para as telas. Isso já ficou claro em Eu Matei a Minha Mãe e ainda mais claro em Amores Imaginários. Agora, em É Apenas o Fim do Mundo recebemos mais do mesmo, o que no caso se traduz em um filme também de cunho pessoal. E tenso até a morte.
A história é um fiapo: escritor famoso descobre que vai morrer e volta depois de longo tempo para a casa da família contar a todos. Chegando lá, descobre que não conhece mais aquelas pessoas, e o poder que sua fama e ausência tiveram sobre seus parentes os está destruindo silenciosamente.
Quer dizer, silenciosamente até o momento em que ele pisa na casa. Ele, então, vira o sol onde todos aqueles planetas orbitam, inseguros, instáveis, falando sem parar, tentando trazer à tona o que era aquela família há muito tempo atrás. Sem sucesso. O que era uma vez uma família feliz viajando para a praia todos os domingos no carro surrado do irmão mais velho se transforma nas sombras do passado lutando com os egos do presente. Egos estes atordoados (a mãe), angustiados (a irmã), irritados (o irmão) e fascinados (a cunhada).
Conseguimos reparar no tempo que ele esteve fora pela formalidade de sua cunhada, que o chama de Sr. constantemente e fala do filho como se tivesse acabado de nascer. O olhar de Marion Cotillard parece de desespero e fascinação ao mesmo tempo. As longas pausas e os sustos recorrentes antes das conversas entre os dois aumenta ainda mais essa estranheza.
Da mesma forma, a irmã tenta esconder o longo hiato de comunicação entre eles, ficando chapada e colocando uma música que deve ter sido um hit na época em que os dois ainda se viam. Porém, nada tira seu olhar cabisbaixo e a posição de ovelha desgarrada, de cão abandonado, que deve ter ouvido sua mãe falar sobre seu irmão por muitos e muitos anos.
E sua mãe… esta é a versão mais madura do trauma da saudade. Inquieta, com lapsos de memória e audição, tenta dançar uma música brega com a filha para animar seu filho querido, em uma demonstração de até onde chega a humilhação e a adoração de um ser humano, e como o filme transforma um momento tenso em um momento leve em questão de segundos. Talvez o único e último momento leve de todo este pesadelo astral.
E o responsável por catalisar, alavancar e sintetizar toda essas frustração e ódio, na figura de alguém disposto a estragar todo segundo de esperança de que “tudo dê certo” nessa visita (se é que existiu, em algum momento, a definição de dar certo) é a figura do irmão mais velho, vivida de uma maneira enérgica até o limite do caricato (mas sem nunca ultrapassá-lo) por Vincent Cassel. Sua capacidade de antipatia, sarcasmo e indignação beira o ridículo, e é justamente sua incapacidade de traduzir esse sentimento em palavras que torna sua performance arrebatadora. Quando ele aponta no ar, quase querendo capturar uma expressão dita pelo seu irmão, exclamando: “isso! Exatamente isso que eu quero dizer”, ele luta de todas as formas para que o irmão consiga entender a coisa mais simples do mundo: acabou.
Acabou não apenas a vida do escritor, mas qualquer possibilidade de vínculo deste com o que foi um dia sua família, seus amigos, sua base afetiva. Seu primeiro namorado morreu de câncer, diz seu irmão mais velho da maneira mais impessoal possível. Esse é o nível de conexão entre essas pessoas. Beira o negativo.
E o diretor Xavier Nolan mostra tudo isso como ele nasceu para mostrar: com luzes intensas, closes de perfis tentando dialogar ao menos com os olhos, já que as palavras parecem inexplicavelmente escapar do famoso escritor. Ele tenta olhar de frente, ensaiando um sorriso calado, para pessoas que não reconhece mais. Seu irmão, o único com memória, parece nunca encará-lo de frente exceto em um único e com um único objetivo: acertá-lo um soco com punhos já marcados, denotando a agressividade inata que agora desperta com a “família unida”.
A trilha sonora, como sempre, é um presente à parte. Não apenas pela seleção de músicas, mas pelo tom dramático de um Almodóvar existencial, tornando cada cena um duelo de egos em um palco de teatro. O roteiro foi baseado em uma peça, e o filme intensifica ainda mais as atuações dos personagens. Até o design de som reforça isso, com o relógio cuco simbólico na entrada da casa, marcando o as horas com um susto e os segundos gota-a-gota; eles vão se esvaindo conforme o movimento das pupilas da mãe pousando nos olhos do filho.
Xavier Dolan continua sendo o cineasta mais pessoal e intenso do cinema contemporâneo. Ele força seu espectador a entrar no jogo a qualquer custo, e para o cinéfilo desafia a encontrar falhas na emoção meticulosamente medida quadro a quadro (Dolan também é o montador). Como competir com isso, quando o retorno do diretor é comparado ao retorno de um filho famoso e moribundo? Pelo menos, diferente do filho, o diretor ainda conhecemos. Ele não mudou muito desde a estreia. Talvez esse seja seu ponto fraco para o futuro. Vamos observar se o personagem de Vincent Cassel consegue capturar esse detalhe. Até porque nos filmes de Dolan, pessoal e artístico se combinam em um mosaico que se torna universal.
“Juste la fin du monde” (Canada/France, 2016), escrito por Xavier Dolan, Jean-Luc Lagarce, dirigido por Xavier Dolan, com Nathalie Baye, Vincent Cassel, Marion Cotillard, Léa Seydoux, Gaspard Ulliel