Cinefilia Crônica | E todos riram


O vilão caricato riu. O capanga do vilão caricato também riu. O outro capanga do vilão caricato olhou para os lados, titubeou. E riu. Ele ainda não sabe, mas é tão burro que dará a chance para o refém fugir do cativeiro e por isso será morto cruelmente pelo vilão caricato.

Sem entender nada, o refém também riu. O vilão caricato fechou a cara. O capanga do vilão caricato ficou sério e balançou a cabeça, em tom de reprovação. O outro capanga do vilão caricato riu mais alto, fez aquele barulho esquisito igual a um porco, percebeu um silêncio e resolveu parar de rir.

O vilão não queria rir com o refém, mas rir do refém. Da cara dele. Estava ali, perto de ser morto com crueldade. Mas a matar rapidamente não é tão legal quanto fazer chacota, humilhar e dar porradas. O risco de uma reviravolta vale o preço da satisfação pessoal (e do ingresso também, convenhamos).

Antes de ter tempo para sentir mais medo, o refém ouviu atentamente o discurso extenso do vilão caricato, explicando os motivos do sequestro, seus planos depois do outro capanga matar o refém e como aquilo o faria ganhar rios de dinheiro, ficar ainda mais poderoso e revoltar os mocinhos da trama.

O refém ficou indignado, o vilão caricato não podia fazer aquilo. E pá!, tomou outra porrada. Então, o vilão caricato riu. E o capanga também riu. E o outro capanga olhou para os dois, olhou para o refém, olhou para os dois. E riu. E o vilão caricato aumentou o som da risada. Os capangas não ousaram rir mais alto que o chefe, tão cruel com quem não batia as metas mensais de maldade.

O refém ficou apavorado, mas percebeu uma brecha que o permitia desatar os nós prendendo suas mãos atrás da cadeira. Então, o vilão caricato foi embora para dar prosseguimento ao plano maligno. O capanga foi atrás e o outro capanga ficou naquele lugar fétido. A ordem foi acabar com a vida do refém.

Não tinha jeito, já era mesmo. Seria possível sair dali? Bem possível, pensei. Não iam pagar o cachê milionário para esse ator renomado morrer assim, antes da meia hora final. Mas não faria muito sentido. Era só o outro capanga dar um tiro e acabar com aquilo tudo. Ele apontou uma arma, mas o refém pediu um copo d’água, um cigarro, um último pedido, uma cerveja. Sei lá. Mas pediu.

O outro capanga, burro que só ele, atendeu. E morreu. Com uma pancada, um chute, coisa assim. E o refém foi atrás do vilão caricato para impedir o plano maligno, mirabolante, estrambólico, difícil de adjetivar.
No dia seguinte, me perguntaram na hora do almoço o que eu tinha achado daquele filme. Todo mundo estava comentando, as cenas de ação isso, as perseguições aquilo. Falei que não curti muito, tudo muito sem sentido, só fiquei até o fim da sessão porque estava com minha namorada, fã de carteirinha do protagonista.

Silêncio. E todos riram.

Confira os outros textos da coluna Cinefilia Crônica

DEIXE UM COMENTÁRIO

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Menu