[dropcap]R[/dropcap]epleto de simbolismos, Em Chamas também move-se de maneira etérea, sem preocupar-se em estabelecer conclusões certeiras sobre o que nos mostra. Tomando seu tempo para estabelecer com calma os seus três personagens centrais, a obra ainda é repleta de uma tensão e de uma angústia conforme a trama começa a apresentar-se.
Mas, mesmo ao tomar caminhos mais narrativamente convencionais, Em Chamas fica longe de ser algo típico.
Baseado no conto Queimar Celeiros de Haruki Murakami, Em Chamas passa a primeira metade de suas quase duas horas e meia de duração apresentando e estabelecendo o trio de personagens que acompanharemos de perto ao longo da projeção. O protagonista, Jong-su Lee (Yoo Ah-in), é um jovem humilde que, entre o retorno para casa para “resolver um problema do pai” e as tentativas frustradas de estabelecer-se como escritor, reencontra uma colega de escola por quem tem uma queda, a excêntrica Hae-mi Shin (Jeon Jong-seo). Em busca de uma resolução para a “grande fome” que a aflige, a jovem parte para o Quênia. Ao retornar para a Coreia do Sul tempos depois, Ben (Steven Yeun) está com ela. O novo namorado de Hae-mi é charmoso, misterioso, elegante e riquíssimo, dotado de uma postura sofisticada e madura muito distante do jeito um tanto perdido e doce de Lee.
Depois de acompanhar o frágil triângulo amoroso entre os três por algum tempo, Em Chamas apresenta então o motim para sua trama central (que não é, necessariamente, o centro do filme em si). Em uma conversa a sós com Lee enquanto Hae-mi tira um cochilo, Ben revela que seu hobby é queimar celeiros. Um a cada três meses, mais ou menos, é o suficiente para satisfazer esse desejo. Ele diz procurar apenas celeiros abandonados, que ninguém estava usando. Mas há algo de sinistro, de frio, na postura dele ao fazer essa revelação. Lee imediatamente desconfia do que ouviu: seria aquilo um indício de algo de maligno em Ben, ou mesmo uma metáfora para outro crime?
O diretor Chang-dong Lee coloca o ponto de vista do protagonista no centro da história, fazendo com que Lee, de certa forma, torne-se um narrador não confiável. Hae-mi, por exemplo, ressurge na vida dele quase como uma Manic Pixie Dream Girl (e se você não sabe o que é isso, aqui explicamos!), com seu espírito livre e tendência a adormecer em qualquer lugar. Mas o diretor e a atriz Jong-seo Jeon acertam ao focar nas complexidades da jovem; Jon-seo traz melancolia e ansiedade a Hae-mi. Enquanto isso, em seu primeiro papel na Coreia do Sul, Steven Yeun cria um vilão atípico, transitando bem entre o charme e a mescla de tédio e de arrogância que levam Ben a ter o… passatempo que tem.
As relações entre cada um desses personagens são complicadas, repletas de ciúmes, esperanças e desejos não cumpridos, nostalgia… Mas tudo se desenrola com naturalidade e, por fazer com que os sentimentos tornem-se mais palpáveis, isso também amplia o impacto das revelações que, aos poucos, tomam conta da narrativa.
Embaladas pela trilha sonora etérea de Mowg, a direção de Lee e a fotografia de Kyung-pyo Hong encontram uma beleza ora melancólica, ora esperançosa dos cenários, especialmente no interior da Coreia do Sul. Enquanto isso, a montagem de Da-won Kim e Hyun Kim estabelece um ritmo cuidadoso e paciente, mesmo embasado por uma tensão constante. Nesse sentido, é fascinante perceber como o cineasta jamais trata quaisquer informações como reviravoltas. O impacto é sentido muito mais no impacto que aquilo tem para os personagens do que em qualquer outro elemento fílmico.
Assim, Em Chamas surge como uma pequena obra-prima cuidadosamente construída, fazendo jus ao autor de sua fonte original e entregando uma história tradicional de maneira inesperada e única.
Esse texto faz parte da cobertura da 42° Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
“Beoning” (KOR, 2018), escrito por Jungmi Oh e Chang-dong Lee a partir do conto Queimar Celeiros de Haruki Murakami, dirigido por Chang-dong Lee, com Ah-In Yoo, Steven Yeun, Jong-seo Jeon, Soo-Kyung Kim, Seung-ho Choi, Seong-kun Mun, Hye-ra Ban, Mi-Kyung Cha e Bong-ryeon Lee.