Emilia Pérez | Sobre viver a vida, mesmo que por apenas um momento

Ainda que seja difícil separar Emilia Pérez de toda polêmica em volta de sua produção, é preciso fazer esse esforço, afinal, não é a primeira e nem a última vez que os deuses do cinema escrevem certo por linhas tortas. Mas ainda assim, quem preferir chutar o filme pelos erros estruturais e bobagens ditas pelos responsáveis a apreciar esse exemplo incrível de como uma história pode surpreender a cada esquina que o roteiro vira, tudo bem. Azar o de vocês.

Não que isso diminua a velhas discussão sobre como o “cinemão” não tem capacidade de enxergar o que está abaixo dos trópicos com um certo respeito e precisão. Muito menos tire dos bastidores do filme a questão de um “filme mexicano” que nunca cruzou o oceano e preferiu ficar lá pela França mesmo. Também é preciso ouvir as reclamações dos grupos ligados às minorias refletidas no filme e pensar a respeito. Mas nada disso, nesse caso específico, deveria marcar ou prejudicar a experiência de Emilia Pérez. Não diminuindo as questões, mas não permitindo que elas sejam maiores do o filme. E não são (pelo menos não nesse caso, já que na enorme maioria dos outros casos, elas são).

Se o que fica para trás são essas polêmicas, o que vem na frente é um filme com uma habilidade incrível de surpreender. É difícil imaginar o que vem atrás de cada porta aberta pelo roteiro de Jacques Audiard (que também dirige o filme) e isso é maravilhoso. Do começo ao fim, é como se tudo pudesse acontecer e todos personagens pudessem tomar qualquer caminho, mesmo que isso os coloque no óbvio caminho de alguma tragédia física ou emocional. E se só isso não fosse suficientemente surpreendente, os números musicais farão o resto.

Isso soa esquisito e a intenção de Audiard parece realmente ser essa. Um mundo onde tudo está levemente fora do lugar, mas com delírios e um ritmo suficientes para ajudar esses personagens a entenderem onde deveriam estar, mesmo que isso signifique encontrar caminhos completamente diferentes. Talvez perigosos. Talvez inesperados. Talvez tão pacíficos que sejam as únicas opções possíveis, mesmo em meio a decisões que tinham tudo para dar errado.

Zoe Saldana é Rita, uma advogada mexicana que vê seu trabalho sempre ser soterrado pela corrupção, até que recebe um telefonema de Manita (Karla Sofia Gascón), chefe de um cartel e que lhe promete a riqueza desde que ela a ajude em uma questão delicada e específica: Sua transição para mulher.

O que vem depois disso poderia ser um monte de coisas, mas é algo bem diferente. Afinal, tudo dá certo e a questão da transição deixa de ser uma questão, com Emilia Pérez passando a ser filme sobre o quanto o passado pode ser colocado de lado e escondido diante da possibilidade de recuperar o que de alma se tenha perdido diante das decisões que a vida toma por você. Emilia (não mais Manitas) decide usar seu dinheiro e prestígio recém-adquirido para ajudar famílias de pessoas desaparecidas enquanto tenta se reaproximar com os filhos e a ex-esposa, Jessi (Selena Gomez). E mais uma vez, o que vem depois disso ainda surpreenderá muita gente.

Talvez o final até seja o que de menos criativo e inesperado tenha no filme, apelando para uma explosão meio sem graça e anticlimática, mas o que vem antes e depois é uma tramoia bem construída de Audiard, onde se percebe o quanto certos pecados tendem a voltar à tona de uns, mas fazendo com que outros, enfim entendam seus papéis dentro daquela nova vida, mesmo sendo algo que nunca esperava acontecer.

É lógico que qualquer detalhe além dessas afirmações vazias do parágrafo anterior estragariam parte da surpresa do espectador, mas o mais importante mesmo é entender o quanto esses personagens estão no filme para crescerem e se transformarem. Absolutamente ninguém acaba o filme do mesmo jeito que o começa e a transição de Emilia talvez seja a menor e a mais sutil das transformações.

Mas o que está além disso é igualmente impressionante. A arquitetura visual criada por Audiard é direta e objetiva quando deve ser, mas absolutamente provocante e desconcertante quando o trabalho dos compositores Clémente Ducol e Camille surge na tela. Não há cena que não possa se tornar um número musical grandioso, muito menos toda canção precisa ser grandiosa. Não ritmo e nem certeza de que alguma canção será igual a qualquer coisa que você esteja acostumado a ver em musicais, não por um tipo de criatividade inédita, mas sim por, muitas vezes aceitar que algumas palavras delicadas podem ganhar uma melodia sutil apenas para aquele momento se permita ser o musical que o filme quer sempre ser. Do outro lado, o que é grande não economiza, nem no tamanho e nem na capacidade de discutir questões importantes para o filme e para a história, mas sempre extrapolando as transições e surpreendendo os espectadores. Em ambos os lugares é sempre como se o espectador fosse violentamente empurrado para dentro daquelas canções sem esperar, mas acabassem pedindo para que elas não acabem tão cedo.

Mesmo com os problemas extra-filme, Emilia Pérez é uma experiência única, inesperada e poderosa. Principalmente sobre duas personagens (Saldana e Gascón) que, como o chefe do cartel cita em certo momento, é preciso sentir o que é viver, mesmo que seja apenas por um momento. Emilia e Rita têm a oportunidade de viverem o que descobrem ser a vida que elas precisam viver. Um legado que talvez não tivessem antes, na vida que viviam, mas sim terão na vida que viverão depois de entenderem seus papéis naquele mundo.

Mas não fugindo dos problemas do filme, a maior defesa de todas polêmicas contra Emilia Pérez está dentro do filme de Jacques Audiard, mas é preciso aceitar que certas respostas não serão simples e nem te colocarão dentro de uma grande e popular opinião contra tudo e todos que não concordam com eles. Emilia Pérez mostra que talvez os caminhos mais inesperados enfrentam aquilo que ninguém acha que está certo, mas é seguindo esse caminho que você encontra o final que você espera, tanto dentro, quanto fora de qualquer filme.


“Emilia Pérez” (Fra, 2024); escrito e dirigido por Jacques Audiard, com Zoe Saldana, Karla Sofia Gascón, Selena Gomez, Adriana Paz e Edgar Ramirez


Trailer do Filme – Emilia Pérez

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