Ron Howard talvez seja um daqueles diretores que encontraram o amadurecimento de sua carreira de modo sutil. Gente como Spielberg e Scorsese, que parecem ter descoberto o quanto contar uma história pode ser simples, sem grandes tentativas de mostrar nada para ninguém. Não comparando Ron Howard com os dois, mas com certeza Era Uma Vez Um Sonho é tão simples e tão humano que deixa aquela impressão de ser feito por alguém que faz o difícil parecer fácil.
A história é a adaptação de um livro escrito pelo próprio protagonista e o roteiro ficou nas mãos de Vanessa Taylor, indicada ao Oscar por seu trabalho em A Forma da Água. Assim como no filme de Del Toro, a ideia aqui não é uma estripulia narrativa, mas sim uma história simples e com significados mais simples ainda. O que não diminui esses sentimentos.
O filme de Howard e Taylor nunca está preocupado com uma trama esquemática ou reviravolta, mas sim com seus personagens. É um estudo de personagens, no plural mesmo, já que, enquanto acompanha a vida adulta de J.D. Vance (Gabriel Basso) durante os dias difíceis da faculdade de diretor em Yale, vê ele tendo que voltar para a cidade onde cresceu para lidar com o vício da mãe em heroína. A história do presente se entrelaça com os flashbacks da juventude onde ele, a mãe, a irmã e a avó constroem essa relação complicada e dura.
Era Uma Vez Um Sonho é sobre J.D. e o quanto ele deve aprender a ser quem ele é, sem precisar se transformar em outra pessoa para ser aceito pelo mundo, mas sobre isso, o filme é de sua mãe, Bev (Amy Adams), e sua avó (Glenn Close, que já deve estar sentindo mais um cheiro de indicação ao Oscar). A curiosidade mórbida aqui é, justamente, as seis indicações de Adams e as sete de Close, sem nenhuma vitória das duas, então é melhor não fazer nenhuma previsão.
Ajuda no trabalho das duas o filme de Howard nunca ser sobre esses “hillbillies” do título (algo como “caipiras”, ou de maneira menos simpática, os “rednecks”), mas sim ser uma história com esses personagens. O sotaque e as excentricidades desse grupo facilmente estereotipado pela cultura pop americana, nas mãos certas, quase sempre se tornam camadas de personalidade a serem exploradas. Adams e Close fazem isso.
Amy Adams cria essa mulher com algum tipo de distúrbio bipolar e depressão que a empurram em uma espiral de dor e instabilidade emocional destruidoramente realistas. O resultado não é um clichê simples esperando uma reviravolta do roteiro, mas sim uma construção complexa e dolorida. Adams leva o personagem com sensibilidade e consegue valorizar as mudanças de humor com a sutileza de uma transformação, nunca como um arremedo de personalidade. Seja no momento que a personagem estiver, ela sempre se mantém sendo a mesma Bev.
Já a avó vivida por Close é uma força da natureza que faria valer o filme caso ele precisasse disso para ser conferido. Não precisa, mas Close faz do filme algo ainda mais interessante diante da potência de sua atuação. Definitivamente ela é uma das maiores atrizes de sua geração e prova isso com cada olhar dessa mulher, alguns movimentos tão sutis que parecem valer algumas dezenas de páginas de qualquer roteiro. O olhar de desaprovação à filha dentro do carro em um velório é digno de poucas estrelas do cinema.
Era Uma Vez Um Sonho ganha ainda mais força do meio para frente enquanto Close ganha um pouco mais de espaço na tela, a precisão de seu trabalho é tamanha que ela some completamente por trás da personagem e de suas camadas de emoção.
Tudo fica ainda mais impressionante enquanto os créditos finais sobem na tela e você percebe o quanto a produção recriou em Close a personagem real, do cabelo às roupas. A direção de arte acaba não chamando tanto a atenção, justamente, pois parecem não estar fazendo trabalho algum, já que tudo parece real demais. O segredo está aí, em tornar algo soar normal mesmo sendo uma recriação que reflete completamente bem a personalidade dessas personagens. A casa da avó parece ser, justamente isso, a casa dessa avó, cheia de lembranças amontoadas e uma construção caótica que foram se juntando ao redor dos anos.
O visual impecável parece não ser um trabalho complexo, porém é isso que ele é. Um daqueles momentos onde você descobre que o difícil está sendo feito de modo fácil. Ron Howard faz o difícil parecer fácil, assim como Amy Adams e Glenn Close. Portanto, talvez Era Uma Vez Um Sonho não impressione, mas sua construção emocional e a sua precisão estética e narrativa são tão acertadas que tudo parece simples. Mas um “simples” tremendamente humano e sensível. Um “simples” real.
“Hillbilly Elegy” (EUA, 2020); escrito por Vanessa Taylor, a partir do livro de J.D. Vance; dirigido por Ron Howard; com Amy Adams, Glen Close, Gabriel Basso, Haley Bennett, Freida Pinto, Bo Hopkins e Owne Asztalos