Um dos maiores prazeres de qualquer amante de cinema é pode descascar um filme, enxergar seu interior e do que “realmente” é formada aquela história emocionante, empolgante ou apaixonante. Alguns filmes o fazem como laranjas, Donnie Darko entraria nessa categoria como uma cebola.
Lançado em 2001 e dirigido pelo estreante Richard Kelly (na época, com 26 anos), o filme contava (na casca) a história desse jovem, Donnie Darko (Jake Gyllenhaal), que, durante uma noite de sonambulismo acorda no meio de um campo de golfe enquanto, uma misteriosa turbina de avião cai sobre sua casa e destrói, justamente, seu quarto. O problema é que o pedaço de avião não parece ter caído de nenhum avião. E só isso já garantiria uma trama minimamente interessante.
Na verdade, a primeira camada de Donnie Darko é exposta pouco antes desse acontecimento, já que Donnie é acordado e levado para o meio do campo de golfe por um coelho de pelúcia de dois metros de altura que lhe avisa que vem do futuro e o mundo vai acabar em 28 dias, 6 horas, 42 minutos e 12 segundos.
E isso só se torna uma camada, e não a transformação em uma história de ficção pura e simples, pois o mesmo Donnie não é só um garoto deslocado, mas sim um com um passado ligado a um incêndio, que visita sua terapeuta com regularidade e, apenas recentemente, deixou de tomar “seu remédio”. Em uma família apática e parecendo carregada e afundada por um punhado de Prozac, Donnie pode apenas estar usando esse coelho, vulgo Frank, como produto de seu subconsciente fragmentado. Por isso, enquanto Kelly forma essa impiedosa história sobre viagem no tempo, fim dos dias e realidades paralelas, Donnie Darko não deixa de ser uma história sobre um garoto passando por sua adolescência.
Ou como diz o próprio pai (Holmes Osborne), alguém que “desviou da bala”, que sobreviveu a um momento que ninguém mais sairia ileso e agora tem uma segunda chance de seguir com sua vida. Sem qualquer fator extraordinário (no sentido sobrenatural), Donnie Darko não só já seria competente como sensível e muito bem construído por esse jovem diretor Kelly. Realçando pequenos momentos da vida desses personagens com uma variação de velocidade que o carrega entre os personagens da escola, ou até enquanto olha para essa família média americana fazendo coisas que uma família média americana faria, o diretor parece interessado por um retrato que custa a deixar a mente.
Kelly entrega então um filme esteticamente diferente e marcante e que ainda conta com uma trilha sonora sensacional, daquelas que casa perfeitamente não só com a época, mas com cada momento em que surge. Que pede “mais um dia” com o Oingo Boingo, ou encara seu “destino, mesmo contra sua vontade” do Echo & The Bunnyman (“homem coelho”?).
Mas o problema é que o coelho, Frank, decididamente não é um produto de sua imaginação.
Mais uma camada
Na verdade, você até tem todo direito do mundo de encarar a presença desse coelho, que parece movê-lo em direção a um destino inevitável, como produto da imaginação de Donnie, o que lhe daria um filme que deixaria o David Lynch bem orgulhoso. Que terminaria com um punhado de furos, mas que, ainda assim, conquistasse muita gente pela coragem e um punhado de surpresas. Mas infelizmente para quem acredita nisso, Frank não estava só na cabeça de Donnie.
Ficando apenas nessa camada (já que ainda há uma outra mais profunda ainda), Kelly acredita estar fazendo um filme sobre um super-herói, justamente como a namorada do personagem, Gretchen (Jena Malone), repara em certo momento por seus dois nomes começarem pela mesma letra (como Peter Parker, Bruce Banner, Reed Richards etc.). Nesse filme, Donnie é acordado por Frank para ser a única esperança daquela realidade contra seu fim, já que aquela turbina, na verdade, vem de um ponto no futuro (justamente em 28 dias, 6 horas, 42 minutos e 12 segundos) onde ocorrerá um buraco negro que acabará com tudo. E esse acontecimento também parece criar um “buraco de minhoca” (aquele da física quântica) por onde a turbina acaba viajando.
Sobra então para Donnie “mexer as peças” nesse tabuleiro para que, no momento exato, tudo ocorra do jeito perfeito e toda dimensão não seja obliterada. Nem que isso signifique sacrificar sua própria vida. Kelly então, em um ponto alto de seu roteiro, faz com que isso tudo aconteça de modo completamente normal e fluído, sem atropelar elementos nem parecer que aquilo está sendo feito com o intuito de um final surpreendente. Tudo acontece como se devesse acontecer, com Frank dando a direção e Donnie agindo, mas sem em nenhum momento parecer uma decisão maior do que é.
Mas são, já que tudo depende de um certo avião sobrevoando sua cidade em um momento chave e do encontro entre Donnie e o verdadeiro Frank. E, como uma corrente entrelaçando seus elos, isso só acontece graças a, simplesmente, todas outras ações que o personagem teve no filme. E isso sem exageros, já que até o menor dos atos tem um reflexo que resulta nesse final surpreendentemente catastrófico.
A Filosofia da Viagem no Tempo
Por mais que na versão que foi para o cinema em 2001 o tal livro A Filosofia da Viagem no tempo não seja muito mais que citado durante várias vezes no filme, já que, na verdade, ele foi escrito por uma antiga professora da escola do personagem, Roberta Sparrow, que, depois de idosa e andando por uma estrada deserta em direção a sua caixa de correio vazia, acabou sendo conhecida pelos garotos como “Vovó Morte”, na “versão do diretor”, lançada anos depois, o texto parece ser muito mais explorado. E não é por menos.
Nele, Sparrow narra uma catástrofe que ela prevê que irá acontecer. Justamente um buraco negro que ameaça acabar com toda realidade. Entretanto, por mais que as pequenas partes desse texto passassem a fazer parte do filme somente nessa segunda versão, é impossível negar que grande parte da mitologia por trás do filme, e o culto em volta dele, venha da ideia contida nessas poucas partes.
Como se tentasse, de uma vez por todas, resolver e deixar claro todas as dúvidas do filme, A Filosofia da Viagem no Tempo inicia falando sobre um “Artefato”, um objeto geralmente de ferro, e com uma ponta, que surge de modo inesperado. Quase como uma intervenção divina, o objeto, que foi jogado fora de sua linha temporal, serve de marco e cria uma dimensão paralela com um certo prazo de validade que irá ruir e levar todas outras com ela.
É lógico que nessa hora seria fácil acreditar que essa “desculpa em forma de livro fictício” tenha aparecido na cabeça de Richard Kelly depois de descobrir o quanto seu filme poderia embaralhar seus espectadores. Como um sutil e figurado, Manual de Instruções para Donnie Darko. Mas existe “a ponta” do tal Artefato.
Descrita muito mais como uma espécie de espada ou lança no tal livro, uma turbina de avião pouco se encaixaria nesse cenário (mesmo sendo de ferro), a não ser que Kelly não fizesse questão de mostrar Donnie encarando o enorme pedaço de avião saindo de sua casa e tendo sua atenção puxada para o centro das hélices. Uma ponta que mostra que ambição do diretor já ia muito além daquela casca.
E voltando ao livro, de acordo com ele, esse acontecimento criado pela presença do Artefato é sempre testemunhado por um escolhido para colocar tudo de volta nos eixos, um Receptor Vivo. Para isso ele ganhará a ajuda de uma força e uma inteligência sobrenatural, a habilidade de conjurar água e fogo, ver o futuro e ainda telecinese.
Donnie Darko (com seu nome de super-herói) conjura a água enquanto alaga a escola, e conhece Gretchen; crava um machado no alto de uma estátua de bronze com sua super força; queima a casa de um pedófilo e obriga sua mãe a viajar durante o Halloween com o poder do fogo; e ainda é “esperto” o suficiente para enfrentar um famoso guru de autoajuda e discursar sobre toda sexualidade dos Smurfs (e até ser lembrado por um de seus amigos do quanto é inteligente). Uma espécie de “minhoca transparente” ainda surge do peito das pessoas a sua volta mostrando seus próximos passos. E, por fim, a telecinese, está lá mais para o final (e um pouco mais difícil de engolir), já que seria impossível achar que a turbina cairia bem sobre sua cabeça sem uma ajudinha.
Ainda no livro, assim como Donnie viajando por seu inconsciente durante a noite, o Receptor Vivo, além de pesadelos, ainda teria que carregar o peso de uma realidade que se embaralha sob seus olhos com alucinações que lhe ajudariam a seguir pelo caminho certo. Esse calvário ainda fica pior com a presença dos Manipulados, pessoas a seu redor que são tocadas por ele e precisam ser colocadas nas posições perfeitas para que tudo transite no caminho da salvação. Além de temerem o Receptor, os Manipulados ainda servem de resistência contra suas ações e, ao final de tudo, acabam apenas tendo uma vaga lembrança dessa realidade alternativa que se formou aos seus redores.
Como um herói, Donnie então tem a oportunidade de tocar essas pessoas e fazer com que elas tenham uma segunda chance, como se pudesse deixar seu legado de bondade mesmo diante de seu sacrifício.
Mas ainda há o Frank, que, de acordo com Roberta Sparrow em seu livro, representa alguém intitulado Manipulador Morto, uma “peça” que, por alguma razão, acaba morrendo nessa realidade e indo junto do Artefato por esse “buraco de minhoca”. O Manipulador Morto, de acordo com os trechos, tem total sapiência do que está acontecendo, mas não tem o poder de mudar nada, a não ser que consiga fazer contato com o Receptor Vivo (através de água, como na parede invisível do banheiro de Donnie) e manipulá-lo para que siga o caminho correto.
Para isso não ter como fugir de controle, e o Manipulador Morto encontrar o fim junto com o resto da realidade, ele ainda tem a possibilidade de armar algo como uma “armadilha inevitável” que obrigue o Receptor Vivo a tomar o rumo que ele traçou. Mesmo que isso pareça uma decisão do mesmo. De modo sutil, o Manipulador Morto, tem o poder de subtrair de toda equação o fator livre arbítrio.
É lógico que tudo pode parece forçado, mas diante disso, Kelly alinhava todo e qualquer detalhe que parece flutuar por sua trama sem nenhuma explicação mais pontual. E se isso permite que alguns detalhes sejam colocados em prova, como a história da telecinese, outros, como o martelo fincado na estátua, a ponta da turbina, a história dos smurffs e, provavelmente, mais um monte de momentos para serem colados, fazem como que Donnie Darko”seja mesmo aquela cebola cheia de camadas. Mesmo que ela ainda tenha uma outra a ser enxergada.
O Salvador
Se Donnie Darko lhe permite achar que Frank é produto de uma alucinação do protagonista, ou que ele seja um super-herói clássico salvando a realidade com um livro doido em baixo do braço, por que não achar então que Donnie é na verdade Jesus.
Lógico que essa hora boa parte de todos que estava lendo isso até aqui largaram o texto ou foram direto para os comentários me xingar, mas não estou falando de Jesus Cristo, aquele carpinteiro da Bíblia, mas sim de uma alusão a sua pessoa.
Na verdade, um pouco mais que isso, um salvador que percorre exatamente o mesmo caminho de provações que Jesus e, ao fim de tudo, se sacrifica, mas deixa uma mensagem, um novo rumo em todos aqueles que tocou. O interessante é que esse lado cristão de Donnie Darko vem, justamente, carregado de um discurso agnóstico que o diretor impõe, principalmente em certo momento entre Donnie e sua terapeuta.
Diante disso, Kelly mostra que seu filme não precisa de uma explicação pragmática e concreta, mas sim, justamente como a história contada na Bíblia, de algo que simplesmente está ali para ser interpretado do jeito que couber para cada um (como a Bíblia consegue fazer em inúmeras religiões diferentes). Como se não negasse uma existência divina, ao mesmo tempo em que relutasse a aceitar que essa “força superior” possa ser provada. Todos estão simplesmente ali para interpretarem seus papeis, “impondo” um suposto livre arbítrio para cada um. Onde ninguém, realmente, faz a mínima ideia do quanto seu caminho está traçado desde o começo.
Ainda nesse “caminho cristão” Kelly parece se divertir com a presença de Patrick Swayze e seu Jim Cunninghan, escondendo sua verdadeira face por trás de um “modo de vida perfeito”. Como um anticristo tentando ganhar a confiança da humanidade, mas escondendo seu inferno por baixo de sua fortaleza, que precisa ser purificada pelo fogo. Não é a toa que Donnie, antes de tomar o caminho da salvação “renega a face do Diabo” ao passar por cima desse modo de vida perfeito, bebendo, fumando e fazendo sexo em três momentos completamente distintos. Como se provasse para todos, seu poder de enfrentamento diante dessa figura maligna.
Donnie Darko então é essa sopa de referências e possibilidades de leituras que, felizmente, acabam enriquecendo mais e mais diante da bagagem de cada um, do jeito como prefere ser enxergado ou discutido. Um tipo de filme vivo que pede para ser descoberto a cada camada, a cada visita, a cada fim do mundo em 28 dias, 6 horas, 42 minutos e 12 segundos.
Donnie Darko (EUA, 2001), escrito e dirigido por Robert Kelly, com Jake Gyllenhaal, Holmes Osborne, Maggie Gyllenhaal, Mary Macdonell, Patrick Swayze, James Duval, Jena Malone, Hoah Wyle e Drew Barrymore
Trailer
2 Comentários. Deixe novo
Muito obrigado Luis… o filme merece mesmo não só essa explicação como mais várias e várias discussões….fascinante mesmo.
Cara, parabéns.
Donnie é um dos meus filmes preferidos há anos (há um bom tempo mesmo), e quando assisti, fiquei fascinado pela história, tendo então conhecido essa explicação do living receiver através do próprio site, que contava tudo isso bem detalhado. É bom ler tudo isso de novo, da até saudades de assistir tudo isso outra vez.
Ótima análise, parabéns!