Estranhos em Casa | Tem algo visceral e sujo a dizer


[dropcap]E[/dropcap]stranhos em Casa é uma produção francesa com cara de independente, longe dos blockbusters e que chega diretamente nos serviços de streamings com o selo da Netflix depois de passear por ai em alguns festivais pelo mundo. Mas Estranhos em Casa tem algo a dizer, e isso basta para ele ser uma experiência obrigatória para quem vive nesse mundo onde nem tudo é preto e branco.

O filme é dirigido por Olivier Abbou, que também assina o roteiro com Aurélien Molas. Estranhos em Casa ainda aponta ser baseado em uma situação real, com os nomes das vítimas sendo mudados para protege-los. Mas quem são as vítimas?

Ai talvez esteja o lado mais perturbador de Estranhos em Casa, diante de uma situação tão única, tão violenta, social e psicologicamente falando, como apontar o dedo para quem é vítima e quem é agressor? O filme francês não tem respostas simples, e o espectador terá que passar por essa experiência para chegar nesse final com um gosto amargo na boca.

A trama acompanha essa família que volta de uma viagem em um “motorhome” e descobre que não tem mais casa. Na verdade, vê sua casa ser tomada por um casal de amigos que morou nela enquanto ela ficava vazia. A situação beira o absurdo, mas um labirinto burocrático faz com que essa família não consiga, simplesmente, tirar os amigos de dentro de sua propriedade.

Abbou acompanha essa descoberta de dentro do trailer, vendo na chuva o protagonista (Adama Niane) ser preso pela polícia acusado de invadir a própria propriedade. De dentro do carro, sua esposa (Stéphane Caillard) grita aquilo que todo mundo quer gritar quando um homem negro é subjugado pela polícia truculenta. Abbou firma em sua mente as vítimas dessa história do jeito mais violento possível.

Paul (Niane) perde tudo. E isso se reflete no limite que ele aguenta antes de quebrar. Estranhos em Casa não é sobre essas pessoas na casa, mas sim sobre Paul, e como o título original cita (“Furie”), sua fúria.

Se o começo joga o espectador em meio a uma situação tão bizarra e com vítimas tão claras, o filme de Abbou, te carrega para uma jornada onde o certo e errada estão embaçados pela lente de uma sociedade que esmaga Paul. A direção não peca em deixar isso passar, desde o começo há algo de errado e esquisito no modo como ela observa os protagonistas, e quanto mais a trama anda, mais longe daquela cena na chuva eles ficam.

O protagonista é professor e enquanto ensina os direitos fundamentais para seus alunos, cita o direito à vida, propriedade e felicidade. Em discussão com um de seus alunos, é acusado de ter uma “alma branca”, como se não estivesse disposto a brigar por seus direitos como seus ancestrais e gerações anteriores. Mais para frente, Paul se envolve com um grupo de “caipiras” cheios de ódio e que se movem através da única opção de tomar o que é deles, independente do que isso possa significar para as pessoas ao seu redor.

Em certo momento, Paul escuta uma alegoria sobre a invasão de porcos em uma fábrica abandonada, “a sujeira não será limpa se ninguém for lá limpar”. Paul interrompe a cena com um tiro que mata o porco em questão.

Estranhos em Casa é sobre como Paul perder o controle sobre sua própria vida, tem sua propriedade roubada e não encontra sua felicidade. O resultado disso não é uma fúria cega, mas sim uma situação ainda maior do que ele, onde qualquer coisa que ele fizer não fará mais diferença nenhuma diante do final tragicamente inevitável.

O protagonista sofre uma pressão onde sua emasculação se torna algo real para ele. Perder sua esposa passa a ser uma espécie de perda de propriedade. O reflexo distorcido de um mundo que se importa com o “macho alfa”, Paul é apenas a vítima dessa força motriz pervertida, mas aceita de bom grado essa deformação, já que ela corrobora com sua fúria. Paul é o retrato do ser humano e do quanto ele aceita o pior da sociedade que o rodeia, desde que aquilo concorde com seus desejos. Por mais violentos que eles possam ser.

Paul é fraco, e o mundo não sabe lidar com suas fraquezas. E isso é, quase sempre, a melhor receita para o desastre. Uma vítima não decide ser uma vítima, como Paul escuta em certo momento, mas com certeza o agressor tem essa opção, e ele prefere apertar esse gatilho ao invés de ser enxergado como fraco.

Quanto mais longe o roteiro de Estranhos em Casa chega, mais fundo carrega Paul a esse ponto sem retorno, e quando ele decide voltar, não existe mais jeito. Paul se tornar um observador da violência que ele próprio planta, agir naquele momento é apenas fazer essa violência crescer ainda mais. Um caminho tão pintado através dessa fúria, que os agressores iniciais se tornam vítimas impostas pelo próprio Paul. É ele quem cria esse cenário onde os invasores de sua casa são deixados de lado, esquecidos, enquanto o filme expõe as camadas de Paul.

Estranhos em Casa não vilaniza os “inquilinos”, e isso é incrivelmente perturbador para o espectador acostumado com os clichês do gênero (e da vida). É fácil querer odiar eles, mas o diretor Abbou vai ainda mais longe e te faz não gostar do protagonista. Uma inversão que quebra qualquer maniqueísmo.

Um filme que tem algo a dizer, que mostra o quanto não existe âncora moral quando se está no limite. Uma experiência visceral e suja, porque o ser humano é visceral e sujo quando precisa defender sua vida, sua propriedade e sua liberdade. Quando perde o controle e é tomado por essa fúria que batiza o filme no título original. Sem respostas simples e amargo.


“Furie” (Fra/Bel, 2019); escrito e dirigido por Oliviera Abbou; com Adama Niane, Stéphane Caillard, Paul Hamy e Eddy Leduc.


Trailer do Filme – Estranhos em Casa

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